Cinco dos seis projetos gaúchos que foram contemplados para receber recursos do edital Natura Musical perderam o patrocínio conquistado por conta de impasses envolvendo a Lei de Incentivo à Cultura (LIC-RS). Para receber o aporte financeiro disponibilizado pela empresa por meio de compensação fiscal, os projetos necessitavam de aprovação em alguma das rodadas de distribuição de recursos da LIC, o que ocorreu somente para um deles.
Neste ano, a LIC utilizou-se de um sistema de seleção feito por lotes (a cada lote, um número de projetos foi selecionado para receber o valor disponibilizado naquele período) e que envolveu dois entes: o Conselho Estadual de Cultura (CEC) e a Secretaria Estadual da Cultura (Sedac). A pasta estadual estabeleceu regras, prazos de inscrição de cada lote, plataforma e os tetos por linha de projeto. Já o CEC, neste ano, foi o responsável por avaliar os projetos inscritos com notas para diferentes critérios, formando um ranking entre os projetos até que se esgotasse o limite de repasse estabelecido pela Sedac.
Em caso de empate, a prioridade, neste ano, foi para projetos oriundos de cidades que não haviam recebido recursos da LIC nos últimos 12 meses. O critério gerou incontáveis debates ao longo dos últimos meses, pois foi um dos principais responsáveis por fazer com que eventos como a Feira do Livro de Porto Alegre e o Festival de Cinema de Gramado ficassem de fora da lista de priorizados para captação de recursos.
Estes episódios levaram a uma votação na terça-feira (14), em que a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o projeto de lei que retira do Conselho Estadual de Cultura a responsabilidade de analisar e selecionar as iniciativas que buscam recursos da Lei de Incentivo a Cultura (LIC). Foram 37 votos favoráveis e 12 contrários. A proposta irá para sanção do Piratini. A partir de agora, a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) terá a missão de contratar técnicos especializados que terão o controle sobre o dinheiro destinado a eventos e iniciativas culturais.
Diante do cenário adverso, o único projeto gaúcho que obteve nota para entrar na lista de aprovação na LIC e que, portanto, estará apto a receber o patrocínio da Natura é o duo 50 Tons de Pretas, formado pelas artistas Grazi Pires e Dejeane Arruée. Assim como os demais projetos selecionados pelo Natura Musical, as duas tiveram uma sequência de insucessos nas primeiras rodadas de avaliação da LIC, mas conseguiram alcançar a aprovação na última rodada do ano. Elas receberão recursos para a gravação de um disco.
O mesmo não ocorrerá com outros cinco projetos que também foram selecionados pelo Natura Musical, mas não avançaram na lei de incentivo: os festivais O Bronx e GFilms Rap, o espetáculo Ialodê e a gravação de álbuns dos artistas Luiza Hellena e a Velha Guarda da Praiana e Paula Posada.
O que dizem os projetos e o CEC
GZH conversou com representantes de dois dos cinco projetos que perderam o patrocínio conquistado no edital Natura Musical: Luiza Hellena e a Velha Guarda da Praiana e GFilms Rap Festival. O sentimento de decepção é comum entre os projetos.
— Os editais da Natura sempre foram muito certeiros. Então, quando fomos selecionados, celebramos demais, ficamos tranquilos. Mas imagina como é planejar algo coletivo, conseguir ganhar um edital muito concorrido como o Natura Musical, para depois alguém vir te dizer que tu perdeu? Isso pesa demais — lamenta o músico Leandro Toranca Fagundes, conhecido como Guido CNR, idealizador do festival GFilms Rap.
Guido lembra que o festival GFilmes Rap, previsto para ocorrer em Pelotas, chegou a tirar nota máxima em três rodadas de avaliação da LIC, mas não foi priorizado na distribuição dos recursos por conta do critério de desempate envolvendo a cidade — como Pelotas havia recebido recursos da LIC nos últimos 12 meses, perdeu no desempate.
Na última rodada, porém, o projeto acabou tirando uma nota menor que a das avaliações anteriores e, por conta disso, não foi aprovado. Os proponentes entraram com recurso e a nota foi reajustada, mas permaneceu insuficiente para aprovação. Conforme o idealizador, o projeto inscrito na última rodada não tinha alteração em relação às rodadas anteriores, mas ainda assim obteve nota menor.
— Ao me ver, nosso projeto não tinha problema algum, tanto é que passamos na curadoria rigorosa do Natura Musical e tiramos três notas máximas no CEC. O que sentimos é que fomos chutados nesta última rodada. Até mesmo porque estávamos tentando aprovar R$ 80 mil, um valor muito inferior ao de outros projetos que foram priorizados — diz Guido.
Alessandra Motta, atual presidente do Conselho Estadual de Cultura, explica que as avaliações são feitas por conselheiros diferentes a cada rodada, respeitando os critérios e categorias previstos no regulamento. Ela admite que é possível que um mesmo projeto receba notas diferentes em rodadas distintas.
— É possível porque os projetos retornam zerados a cada rodada e são distribuídos para novo relator. Esse relator é uma comissão onde temos no mínimo três e no máximo cinco conselheiros. Trata-se de um processo muito minucioso e que segue o que está regulamentado para aquele ano. Tivemos reuniões de conselheiros que chegavam a durar quatro horas, por exemplo — detalha.
A presidente da entidade reforça que o desejo do Conselho Estadual de Cultura seria contemplar todos os projetos inscritos:
— A gente lastima muito, pois todos os projetos têm um mérito. Só que, infelizmente, o cobertor (de recursos) é curto. Às vezes, menos de um pontinho acaba fazendo um ou outro ficar de fora, mas merecedores todos são.
Apesar de ter perdido o patrocínio do Natura Musical, o festival GFilms Rap será realizado entre os dias 16 e 19 de novembro, em Pelotas, com recursos angariados por meio de vaquinha e investimento próprio da organização.
— Obviamente não será da forma como planejamos, mas estamos dando um jeito. Sempre demos um jeito, porque nunca tivemos patrocínio para nada no festival (o evento ocorre desde 2012). Mas está sendo muito difícil. Temos que cuidar da nossa saúde mental, inclusive — afirma o idealizador. — Outra questão importante é que nós (organização do festival) somos jovens, podemos nos recuperar, mas como a dona Luiza Hellena, uma idosa, vai se reerguer? — questiona.
Dona Luiza Hellena é a protagonista de outro projeto que perdeu o patrocínio do Natura Musical. Aos 78 anos, a idosa, que tem notória contribuição na cena cultural negra da Capital, gravaria seu primeiro disco com o valor disponibilizado. A obra seria uma parceria com a velha guarda da escola de samba Praiana e contemplaria também a gravação de um clipe para o lançamento e um show presencial e com transmissão online. Contudo, o projeto não conseguiu alcançar nota suficiente para aprovação na LIC.
O produtor cultural Paulinho Parada, responsável por assessorar Luiza Hellena nos trâmites de editais, lamenta que esta possa ter sido a última oportunidade da artista.
— A dona Luiza Hellena não conseguiu gravar um álbum durante 70 anos. Ela teve essa vitória de ser selecionada no Natura Musical, criou uma expectativa, e agora isso foi tirado dela. É como receber uma caixa de presente vazia — diz Paulinho. — Ela é idosa, tem problemas de saúde. Provavelmente foi a última chance dela. Como vamos conseguir esse patrocínio agora?
O produtor também questiona a avaliação atribuída pelo Conselho Estadual de Cultura e critica a burocracia de todo o processo, mas acredita que a empresa responsável pelo Natura Musical também deveria amparar os projetos de alguma forma. Na visão dele, o trabalho iniciou já ao terem sido selecionados no edital, independentemente da aprovação na LIC:
— Demos entrevistas para a imprensa, fizemos fotos para a Natura divulgar em suas redes sociais... Tudo isso é um trabalho. Acredito que a empresa, pelo menos, deveria ter o mesmo empenho que teve ao divulgar os selecionados para divulgar isso que ocorreu.
O que diz o Natura Musical
GZH procurou a Natura para comentar a situação dos projetos gaúchos selecionados pelo Natura Musical. Por meio de sua assessoria, a empresa enviou uma nota confirmando o cancelamento do patrocínio e reforçando que a aprovação na LIC é pré-requisito estabelecido no edital. A empresa também afirma que, dentro de suas limitações, tentou dialogar e intervir na situação.
Leia abaixo a nota:
"Esclarecemos que é de conhecimento da Natura que apenas um (1) de seis (6) projetos pré-selecionados no Edital Natura Musical do Rio Grande do Sul 2022 foi contemplado para o recebimento do incentivo estadual via LIC. Conforme comunicado na etapa de certificação, os projetos receberam um prazo de seis meses para aprovação na lei de incentivo, já que o início dos projetos era previsto para 2023.
Desde julho, quando os projetos não foram priorizados pela primeira Comissão Especial Avaliadora do Conselho Estadual de Cultura (CEC) do Rio Grande do Sul, a Natura tomou medidas visando contribuir no processo para viabilização do patrocínio tais como a flexibilização do prazo de seis meses para aprovação na lei de incentivo estadual, além do envio de uma carta ao Conselho Estadual de Cultura endossando a intenção de patrocínio, explicando os critérios de avaliação do Edital Natura Musical e reforçando o impacto cultural que esses projetos apresentam.
Porém, após a última avaliação da Comissão Especial do CEC, recebemos a notícia de que cinco (5) projetos não foram aprovados: Festival OBronx, Ialodê, Luiza Hellena e a Velha Guarda Praiana, Paula Posada e Rap Festival e, por isso, não receberão o patrocínio da plataforma. Ressaltamos que o regulamento de nossos editais é explícito sobre a necessidade de aprovação nas leis estaduais para recebimento do patrocínio, uma vez que os recursos utilizados nos editais estaduais são incentivados.
Há 18 anos Natura Musical valoriza a música como um veículo de bem-estar e conexão, realizando anualmente editais públicos, em parceria com leis de incentivo nos Estados do RS, BA, MG e PA, e selecionando projetos por meio de uma ampla curadoria de profissionais do mercado cultural. São quase duas décadas e mais de 600 projetos fomentando a cultura e o impacto positivo que esse investimento gera na sociedade. No Edital no Rio Grande do Sul, já são 9 anos de atuação e mais de 45 projetos patrocinados".