Quarenta anos se passaram desde a primeira edição do Musicanto. Era 1983 quando o evento nascia na cidade de Santa Rosa, idealizado pelo músico Luiz Carlos Borges (1953-2023), então secretário de Cultura local. De lá para cá, o festival rompeu a bolha do Rio Grande do Sul e se tornou célebre no circuito sul-americano de festivais de música. A prova está na edição alusiva aos 40 anos, que ocorre desta quinta-feira (16) a sábado (18) no Centro Cívico de Santa Rosa (veja detalhes no serviço ao final do texto), com canções oriundas de diferentes regiões brasileiras e também do Paraguai e da Argentina no páreo pelo troféu máximo.
Mas o caráter diverso não é novidade: está presente desde a primeira edição. Embora traga em sua certidão de nascimento o título de Musicanto Sul-Americano de Nativismo, podendo dar a entender que se trata de uma competição dedicada ao cancioneiro regionalista gaúcho, o conceito do que é nativismo sempre foi plural no Musicanto. É algo que remete à própria trajetória de Luiz Carlos Borges: entusiasta da cultura popular, o músico sempre levou sua gaita para passear nos mais diversos territórios musicais, sem deixar de lado a raiz regional do Rio Grande do Sul.
Borges — que morreu em maio deste ano, aos 70 anos — será homenageado no sábado, junto à grande final, com um tributo que reunirá no palco do festival os músicos Ângelo Franco, Shana Müller, Érlon Péricles, Loma e Vinicius Brum. Familiares do artista também estarão presentes no momento.
Gerson Lauermann, presidente desta edição do Musicanto, conta que Luiz Carlos Borges já estava confirmado como atração de encerramento do festival, animado para celebrar as quatro décadas de sua criação. A perda foi sentida por todos na organização do Musicanto.
— Ninguém poderia esperar que ele nos deixaria assim, tão jovem, mas ele sempre será o nosso patrono, nosso presidente de honra — diz Lauermann. — Foi uma perda imensurável não só para as culturas gaúcha e brasileira, mas para a nossa cultura sul-americana — reitera.
Canções célebres
Seguindo os passos de seu criador, o festival já premiou grandes canções regionalistas gaúchas, mas também músicas de gêneros brasileiros como o samba e o forró e de ritmos típicos de países da América do Sul. O primeiro a ostentar o troféu máximo do Musicanto foi Nelson Coelho de Castro, que venceu a edição inaugural do festival com a emblemática No Sangue da Terra Nada Guarani, composição dele que fala sobre as raízes indígenas do Rio Grande do Sul. A música foi interpretada no festival pela cantora Berê.
— Foi uma emoção muito grande ter vencido o primeiro Musicanto com a linda e pungente intepretação da Berê. Na época, mesmo com alguns discos gravados, o público que me acompanhava era mais de Porto Alegre. Depois do Musicanto, me tornei conhecido por todo o Estado — lembra Nelson Coelho de Castro. — No Sangue da Terra Nada Guarani alcançou aquilo que eu nem imaginei que pudesse acontecer. Me refiro ao momento em que essa canção, depois de 40 anos, tornou-se pertencente à paisagem sonora da cidade de Santa Rosa. A autoria vira uma minúcia, a música é da cidade.
No Sangue da Terra Nada Guarani não foi a única composição a ficar gravada na história do Musicanto e de Santa Rosa. O mesmo ocorreu com Vozes Rurais, música de João de Almeida Neto que também concorreu na edição de 1983. Não venceu a categoria principal — o que inclusive gerou debates à época —, mas também ficou marcada como uma das grandes canções reveladas pelo festival.
— Foi no Musicanto que participei com a música que me tornou um cantor e compositor conhecido no Rio Grande do Sul — afirma João de Almeida Neto. — Foi um festival polêmico, numa época de discussões e debates, quando o movimento nativista ainda era um ambiente intelectualizado — lembra o músico.
Tambor da Minha Terra, composta por Luiz de Miranda e Ernesto Fagundes, é outra das canções emblemáticas do Musicanto. Fagundes, que também já saiu campeão em outras duas edições do festival, destaca a importância dele como espaço de celebração da cultura popular, seja ela de onde for:
— O Musicanto é o festival com o qual eu mais me identifico, o mais importante para o tipo de música que eu faço, com o bombo leguero que toco desde os oito anos de idade. É um festival de música brasileira, de Sul a Norte, integrado com a América do Sul. E o Musicanto me trouxe muitas alegrias e muitas lembranças lindas.
Até mesmo Lenine figura no baú de memórias do festival. O músico recifense ganhou o Musicanto em 1992 com Candeeiro Encantado. Estava em início de carreira — anos depois, viria a ganhar também seis premiações no Grammy Latino — e viu no festival gaúcho uma oportunidade de se conectar com seus pares, como contou em entrevista concedida a GZH em junho de 2018:
— Ganhei o Musicanto e saí de Santa Rosa dirigindo o carro que me deram de prêmio, lembro bem (risos). Nos festivais, descobri uma coisa muito bacana: os pares. Era um um bocado de gente que se sentia inadequada dentro do que estava estabelecido. Eu me reconhecia naqueles compositores que só tinham os festivais para mostrar seu trabalho. Para mim, isso foi muito revelador.
Volta por cima
A notória importância do festival contrasta com os percalços para colocar em pé a edição de 40 anos, que correu o risco de não ser realizada em 2023. Isso porque, assim como outros eventos célebres do calendário cultural do Estado, o Musicanto enfrentou dificuldades para acessar recursos da Lei de Incentivo à Cultura do Estado (LIC-RS).
— Foram meses de muita angústia — admite o presidente Gerson Lauermann.
O festival teve uma sequência de insucessos nas rodadas de distribuição de recursos da LIC e chegou a captar patrocínios diretos (sem dedução de impostos) junto a empresas da região de Santa Rosa para conseguir garantir a realização da edição. Aos 45 do segundo tempo, porém, o Musicanto conseguiu aprovação na última rodada do ano da LIC-RS.
Com isso, foi possível investir na realização de uma edição ainda mais completa. Uma das novidades é a Cidade Musicanto, estrutura de cerca de 800 m² montada em frente ao Centro Cívico onde ocorrem as apresentações, com palco para tertúlias, feira de artesanato, pontos de alimentação, espaço de chimarrão e outras atrações. O acesso do público à área é gratuito, enquanto as apresentações no Centro Cívico, que tem capacidade para 700 pessoas, ficam restritas a quem adquirir ingresso (informações abaixo) — entretanto, também haverá um telão transmitindo o festival para quem ficar de fora.
Dentro do Centro Cívico ocorrem as apresentações das 24 músicas que concorrem nesta edição. Destas 24 músicas, 12 serão apresentadas na quinta-feira, quando também haverá show com o Guri de Uruguaiana, e outras 12 na sexta-feira, data em que a atração é Mauro Moraes. No sábado, as finalistas se apresentam novamente para apreciação e decisão dos jurados de qual será a grande campeã — além do tributo a Luiz Carlos Borges, a programação do dia inclui show de encerramento com o argentino Javier Arias.
A expectativa da organização é que, apesar das aflições que marcaram a preparação do festival, a edição faça jus aos 40 anos do Musicanto.
— Será mais uma edição histórica — garante o presidente.
Musicanto - 40 anos
- Desta quinta-feira (16) a sábado (18), às 19h, no Centro Cívico de Santa Rosa (Rua Buenos Aires, 937), na cidade de Santa Rosa (RS).
- Ingressos podem ser adquiridos no site musicanto.com.br, com valores a partir de R$ 20 por dia.