Enquanto o Centro Histórico de Porto Alegre vai se esvaziando com a chegada da noite, um prédio comercial na Rua Riachuelo começa a receber visitantes sedentos por uma noitada de diversão com os amigos. Mas ali não se esconde uma balada ou algo assim. O edifício abriga, em uma de suas salas, o HEX, um bar que oferece para os seus frequentadores uma infinidade de jogos de tabuleiro — os board games. Debruçados sobre as mesas, os habitués passam horas travando guerras, descobrindo assassinos, viajando para outros mundos e criando impérios. Tudo isso, é claro, regado com risadas, pizza e cerveja.
A procura pelos board games experimentou um crescimento sem precedentes durante a pandemia de covid-19. O isolamento social fez com que as pessoas procurassem novas maneiras de se entreter em suas casas e, com uma demanda maior, o mercado precisou abastecer este público, entregando mais opções. Dados do Board Game Geek, maior site especializado em jogos de tabuleiro do mundo, mostram que em 2019 foram lançados 4.677 jogos globalmente. E, nos anos seguintes, os títulos lançados passaram de 5 mil.
Deste montante, o Brasil recebeu apenas 720, de acordo com dados da Ludopedia, considerada a maior plataforma nacional de jogos de tabuleiro. Essa quantidade reduzida vai na contramão do desejo da maioria dos consumidores de board games no país, com 74% deles afirmando que é importante o lançamento em português — por um melhor entendimento das regras e uma experiência mais aprofundada. O valor de produção dos jogos também subiu, com o preço do papel e do frete registrando picos. Por isso, as luderias, como são chamadas as casas de jogos de tabuleiro, vão se tornando uma opção interessante.
Em lugares como o HEX, o visitante paga uma entrada de R$ 10 e pode jogar quantos jogos quiser durante o tempo em que o espaço estiver aberto. Caso o jogador queira uma madrugada de imersão, é possível adentrar, uma vez por mês, o corujão, que tem uma taxa de R$ 50, com direito a pizza e café. Proprietário do estabelecimento, Arthur Vargas, 31 anos, viu que o mercado estava promissor durante a pandemia e, em outubro de 2021, decidiu apostar as suas fichas em seu próprio negócio: alugou uma sala e levou a sua coleção de cerca de 300 títulos para o público porto-alegrense, que estava carente desse tipo de entretenimento.
— Essa procura crescente pelo espaço físico acho que se deve ao pessoal querendo sair um pouco do digital e vir para o analógico, porque você consegue juntar as pessoas em uma mesa. O pessoal está valorizando mais isso, depois de ter que se afastar na pandemia — explica Vargas.
E qual é o público que mais se interessa por jogos de tabuleiro? Para o proprietário do HEX, que já atua com este universo há mais de uma década, os universitários formam a principal parcela de frequentadores de luderias, buscando jogos como o clássico Catan, Carcassonne e Ticket to Ride, além das nova opções que aparecem quase diariamente:
— É o pessoal que entrou na faculdade e está querendo sair para curtir, procurando algum passatempo inteligente ao invés de só ir para um bar. É uma forma de diversão mais cabeça, para pensar mais e que ainda dá para curtir a galera, bebendo alguma coisa.
Apesar de os jovens estudantes serem os principais frequentadores, Vargas destaca que o universo dos jogos de tabuleiro é compartilhado por públicos de todas as idades, com amigos, familiares e até mesmo desconhecidos dividindo as mesas para criar novas histórias e, principalmente, estimular o cérebro. Afinal, existem jogos em que uma partida demora apenas alguns poucos minutos e outros que ultrapassam sete horas para serem concluídos, devido ao alto nível de complexidade.
Paixão
A aproximação com os jogos de tabuleiro aconteceu durante o período da pandemia para o cineasta Thiago Köche, 34 anos. Antes jogador de card games, ele não simpatizava com os de tabuleiro, até que, por sua amizade com Vargas, passou a frequentar o HEX e, a partir disso, não demorou para mergulhar de cabeça no novo hobby. Após descobrir os mundos até então desconhecidos na luderia, ele passou a ser frequentador assíduo do espaço — e, por lá, fez novas amizades que ultrapassam as mesas do local.
— Essa experiência de estar ali sentado jogando um jogo de tabuleiro é um dos poucos momentos em que eu realmente me desconecto. Acho que essa hiperconectividade faz com que a gente entre em um looping de informações e fique perdendo tempo nas redes sociais, nos feeds, e isso vira um vício — avalia Köche. — Minha esposa se mudou para Brasília, e a gente não se vê tanto. Uma das poucas coisas que me ajudam nesse processo é, às vezes, ir lá no HEX. É o momento em que eu tenho uma interatividade social, conversando com outras pessoas.
E foi assim que a fascinação de Köche com o mundo dos board games foi crescendo, levando-o a estudar e se aprofundar neste universo. Não demorou para ser convidado pelo orientador educacional Éderson Ayres, 36 anos, para cocriar um jogo, que deve ser lançado em 2023. O passatempo, que terá como título Revelando Emoções, será cooperativo e baseado em sentimentos, como se cada jogador abrisse uma caixa de fotografias e, então, os outros vão buscar adivinhar o que o companheiro de mesa sentiu ao ver cada imagem.
Outro projeto que o cineasta está desenvolvendo, juntamente com Arthur Vargas, é um documentário sobre o mundo dos board games com previsão de lançamento também para o ano que vem. A obra deverá mostrar a importância da experiência de sentar em uma mesa e passar horas jogando rodeado de amigos:
— O título vai ser Mais que um Joguinho, justamente para provocar quem desconhece os board games, olha e diz: "Ah, é só um joguinho, uma coisa infantil". Mas sempre tem um jogo para alguém. Só que, às vezes, o pessoal não testou o jogo certo, não jogou o jogo que é para ele.
Para todos
Nascida como uma loja virtual, em 2019, a Távola Games cresceu no digital na época da pandemia e precisou de um espaço físico para coroar a sua expansão, providenciado por sua proprietária Márcia Galli, 41 anos, em abril deste ano. Agora, além da venda de jogos, é possível que o público se reúna para uma noite de diversão na Av. Protásio Alves, em Porto Alegre. E mais do que isso: a luderia serve como um laboratório, para que as pessoas possam alugar as mesas, jogar o que quiserem e, depois, caso queiram levar a experiência para casa, comprar diretamente na loja.
— Os jogos de tabuleiro, além de serem um passatempo, também são uma forma de unir a família, trazendo mais para o lúdico e tirando das telas. Vemos, também, muitas pessoas tentando resgatar o que tinham na infância, quando jogavam Banco Imobiliário e Jogo da Vida, e, chegando aqui, descobrem um mundo novo — conta Márcia.
A proprietária da Távola Games entrou para o mundo dos jogos de tabuleiro revisitando, em 2017, a sua infância ao lado de amigos entediados e que não curtiam ir para a balada. Assim, eles começaram a juntar os board games que tinham em casa e começaram a jogar. Depois, passaram a comprar novos passatempos e, quando Márcia se deu conta, era "uma criança com um pote de doce".
Com a sua nova obsessão, ela percebeu que Porto Alegre não tinha um mercado muito grande de venda de jogos de tabuleiro e, para conseguir variedade, era preciso pagar uma alta taxa de frete. Quando ela e o marido, Francisco, viram que a Capital poderia ter uma loja específica para o negócio, em uma semana o projeto já estava a todo vapor.
— Foi de uma hora para outra: "Bem que poderia ter uma loja em Porto Alegre". "Quer saber? Poderia mesmo". E aí a gente partiu, e eu não me imagino hoje sem a loja. Fui indo devagarinho e agora me encontrei. É o que eu realmente gosto de fazer — salienta ela, que aluga uma mesa para até seis pessoas por R$ 80, e os jogadores podem ficar ocupando o espaço durante todo o período em que o bar fica aberto.
De acordo com o Censo 2020 da Ludopedia, o público feminino interessado em board games vem crescendo ano a ano, representando, no último levantamento, 39% dos jogadores brasileiros. Mesmo assim, a maioria ainda é formada por homens. Isto não foi um empecilho para Márcia, que vem consolidado a sua marca no mercado e, segundo ela, cada vez mais as pessoas que sentam para jogar não distinguem gênero.
— No começo, até imaginei que pudesse existir uma resistência. Eu sempre achei que era um mundo muito masculino, mas não é. Vejo que dentro do meio, os jogadores me enxergam como um ser humano, não existe mais homem e mulher. Nunca senti nenhum tipo de olhar diferente ou me senti mal. Foi-se o tempo em que se dizia espantado: "Nossa, olha ali uma mulher jogando". Todo mundo senta e joga junto, se diverte — completa Márcia.