Por Rodrigo de Oliveira
Jornalista, crítico de cinema, editor da revista digital Almanaque21
Peter Jackson ganhou a oportunidade que qualquer fã de Beatles sonharia em ter: acesso às mais de 50 horas de gravações inéditas do projeto Get Back que deram origem ao álbum e filme Let It Be, lançados em 1970. O diretor neozelandês, responsável pela trilogia O Senhor dos Anéis, tinha a tarefa de dar conta desse extenso material e produzir um documentário a respeito daquele período. Pensado como um longa-metragem para os cinemas (postergado por conta da pandemia) porém transformado em uma série documental de quase oito horas para o Disney+, The Beatles: Get Back nos dá a chance de ver John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr juntos novamente, em um período conturbado, mas incrivelmente criativo.
É um olhar íntimo nunca apresentado de forma tão aberta aos fãs. O quarteto criou esse projeto querendo lançar um especial de TV para mostrar seu processo de composição e finalizar com um grande show, que viraria um disco. As coisas não acontecem como deveriam, e Jackson usa esse caminho sinuoso para dar estrutura ao documentário. A divisão em três partes, cronológica, abrange aqueles 22 dias de trabalho. A série começa com as filmagens no estúdio Twickenham, em Londres, local onde as principais rusgas se deram – George abandonou o grupo, inclusive. A segunda parte nos mostra o guitarrista voltando, com as gravações no prédio da Apple, um espaço mais aconchegante para a criação. É nesse trecho que o músico Billy Preston surge e se mostra o elemento crucial para a transformação do projeto, dando liga às músicas que vinham sendo preparadas. A terceira parte tem como destaque o antológico show no telhado da Apple, a última apresentação ao vivo dos Beatles.
O que se vê nos três episódios é um raio x do grupo, uma maneira única de observar como se portava o quarteto enquanto lapidava suas canções. Alguns mitos, como Yoko ter desmanchado a banda, são soterrados com a presença geralmente discreta da artista. Todas as namoradas/esposas apareceram nas gravações, com o estúdio se mostrando um espaço mais inclusivo do que se costumava pensar. As câmeras de Michael Lindsay-Hogg, diretor do projeto em 1969, capturam os músicos à vontade. Fosse de outra forma, provavelmente não veríamos as brincadeiras e o modo sem rodeios como cada beatle falava um com o outro. Em um movimento acertado, Jackson não usa narração, deixando a história ser contada pela montagem. É um trabalho minucioso, que levou quatro anos para ser completado.
Em vez de destacar as desavenças, o diretor tenta trazer o criativo para o centro do palco. Joga luz na gênese das canções. A criação de Get Back, por exemplo. Paul começa com um riff na cabeça e balbucia uma letra para preencher o espaço. Quando nos damos conta, já está com algo bem mais concreto e, em poucos minutos, o esqueleto de uma das músicas mais famosas do grupo está ali, na nossa frente.
Para outros, o processo é mais difícil, mas não menos curioso de se ver. George tenta deslanchar a letra de Something e não consegue encontrar uma palavra para preencher os primeiros versos. John dá a dica:
– Inclua qualquer coisa no lugar até achar a palavra certa.
Por alguns minutos, a faixa teve “couve-flor” na letra. George, por sua vez, ajuda Ringo na composição do que viria a ser Octopus’s Garden.
Jackson é reverente ao material, mas evita colocar os Beatles em pedestais, não se furtando em mostrar quatro amigos tentando criar uma obra em um período tão curto, com os problemas que surgem por conta de um conceito desses. Talvez um dos pontos mais interessantes seja notar o quanto George era inseguro com as canções que trazia – e a sua felicidade ao mostrar Old Brown Shoe, fazendo uma jam com Paul, é contagiante. O final apoteótico com o show do telhado é o desfecho perfeito. Quase um fechamento de ciclo – o especial de TV que os Beatles pensaram há 50 anos.
The Beatles: Get Back e suas quase oito horas de duração talvez não sejam um programa para todos, dado o estilo solto do documentário. Mas, além dos fãs, este documento histórico pode interessar a quem se pergunta como funciona o processo criativo musical. Impossível não aprender algo com John, Paul, George e Ringo depois de passar esse tempo junto deles no estúdio. É um privilégio poder acompanhar aquelas mentes brilhantes trabalhando.