São 25 anos desde que o mundo se abriu para além do Malecón. Ele já era grande para a senhora Omara Portuondo, que jamais pensou em deixar Cuba desde que pisou pela primeira vez no palco da boate Tropicana Club por volta de 1945 ao lado da irmã Haydée para cantar um gênero romântico que a ilha conhecia como fílin, de feeling, sentimento. Mas, só a partir de 1996, tudo pareceu se expandir. O guitarrista norte-americano Ry Cooder identificou e criou o grupo Buena Vista Social Club, o cineasta alemão Wim Wenders chegou com sua câmera e, em pouco tempo, todos os continentes pareciam acordar para um tesouro cubano revelado por um filme.
Omara Portuondo responde às perguntas enviadas pelo Estadão de sua casa, em Havana. Além de estar saudosa pela efeméride que leva ao relançamento do álbum Buena Vista Social Club - 25th Anniversary Reissue e por quatro singles nunca revelados, mas já disponíveis nas plataformas, A Tus Pies, La Pluma, Saludo Compay e Vicenta, ela está também em processo de gravação de um álbum que começou a ser registrado durante a pandemia com muitas participações especiais, ainda guardado em segredos. O bolero Horizontes de Niebla, com participação da cantora espanhola Rozalén, já pode ser ouvido. No mais, é aguardar por um disco que será lançado certamente depois que Omara completar 91 anos, no próximo dia 29 de outubro.
Em primeiro lugar, gostaria de saber como é sua vida. Como você lidou com os dias mais difíceis da pandemia?
Bem, eu tenho de ser honesta com você e dizer que essas últimas semanas foram muito difíceis, pois tenho alguns conhecidos que ficaram doentes, mas que felizmente estão se recuperando. Foram meses muito duros para todos, mas é preciso ter fé de que esse momento vai passar, de que vamos aprender algo e de que sairemos mais fortes.
A senhora está com 90 anos. Ainda mora em Havana? Continua cantando muito? E tem um novo projeto?
Eu ainda moro em Havana, perto de minha família, com meu filho Ariel, minha neta Rossio e meus parentes. Apesar das circunstâncias, não parei de cantar nunca, desde quando a pandemia começou. Eu estava gravando meu novo álbum e decidimos continuar gravando na sala de estar de minha casa. Espero que você possa ouvi-lo nos próximos meses porque este projeto está muito bonito. Além disso, neste verão, eu estava fazendo alguns concertos na Europa, Espanha e França.
Já se passaram 25 anos desde o início do projeto Buena Vista Social Club, que revelou ao mundo e mudou a vida de nomes cubanos desconhecidos fora da ilha. Como pode resumir hoje o que aconteceu com todos vocês naquela época?
Bem, imagine você. Eu ali, encontrando bons amigos e vivendo uma experiência como aquela, compartilhando tantos cenários, tantas viagens, entrevistas, momentos, risos... Ao final, nos tornamos uma grande família. Se eu fosse resumir tudo o que vivemos nestes anos, seriam horas conversando. Eu garanto que posso escrever um livro com todas as anedotas. Hoje em dia, continuamos lutando e curtindo o que mais amamos, que é a música. Mas também lembramos com muito carinho e admiração daqueles que já partiram, como Ibrahim Ferrer, Compay Segundo e o meu querido Rubén González.
É possível imaginar como seria o futuro daquele músicos cubanos se não tivesse existido o Buena Vista?
Bem, existem muitos cenários possíveis, mas a vida nos levou a viver isso e a seguir este caminho por algum motivo. Estou imensamente grata por tudo o que pude viver ao longo da minha carreira como artista e tudo é resultado de muito esforço e muito trabalho, mas, acima de tudo, muita dedicação, respeito e carinho pelo que se faz. Às vezes, nos dizem que o Buena Vista Social Club é o embaixador da música cubana no mundo e ainda, 25 anos depois, sinto muito orgulho e respeito pelo que isso significa.
Omara, podemos imaginar que existem muitos outros Buenas Vistas em Cuba hoje? Músicos que o mundo não conhece ainda com seus 80, 90 anos?
Bem, há muita tradição musical e muita cultura em Cuba. A música faz parte da nossa vida, é parte da nossa identidade. Há muita educação musical, muito talento e esforço em ensinar nossa cultura por aqui. Tanto os jovens quanto os não tão jovens têm muito respeito pela música tradicional cubana, ou seja, aqui você pode ouvir muitos gêneros, muitos estilos, mas sempre tratados com muito respeito. Garanto que Cuba é uma ilha de talento, de muito virtuosismo musical. Certamente, em Cuba, ainda existem milhares de artistas a descobrir. Você deve estar sempre atento porque Cuba nunca para de surpreender.
Quais são as melhores lembranças que você tem dos dias de gravação do Buena Vista?
Bom, eu lembro com muito carinho e saudade de que foi um reencontro com músicos talentosos, simples e carismáticos, como Rubén, Ibrahim, Compay e o resto da banda, uma atmosfera mágica de respeito, admiração mútua e fraternidade entre todos os presentes, cubanos ou não. Uma passagem inesquecível, única na minha vida.
Quais são as memórias mais fortes que você tem de Compay, Ibrahim e Ruben?
Eu tive o privilégio de compartilhar muitos momentos, dentro e fora do palco. Eu os conhecia e reencontrá-los foi um momento grandioso da minha vida. Cantar com eles me fazia sentir cheia em todos os aspectos, a qualidade desses músicos me fazia vibrar em cada uma das muitas apresentações. Era uma orquestra completa não só de qualidade musical, mas de qualidade humana, de fraternidade. Quando eles partiram, nada mais foi igual. Houve um silêncio. Nunca mais aquilo foi o mesmo sem Ibrahim Ferrer, embora as novas gerações com que trabalhei tragam também uma cubanidade admirável, seguindo a tradição dos que se foram.
O que lhe vem à mente quando a senhora pensa em Brasil?
Eu sempre acreditei que brasileiros e cubanos são como primos-irmãos. Temos muitas coisas em comum e muito a aprender um com o outro. Somos culturas irmãs e complementares. Ao longo da minha carreira eu tive a oportunidade de trabalhar e colaborar com muitos artistas que adoro e admiro, como minha querida Maria Bethânia, Alê Siqueira, que produziu meu disco, e Swami Jr, que me acompanhou na guitarra (e passou a dirigir os seus shows).
'Preconceito de origem'
Há um pensamento comum sobre o qual talvez seja a hora de refletirmos, 25 anos depois, quando lembramos do episódio planetário Buena Vista Social Club. O filme de Wim Wenders contando a história de artistas cubanos supostamente injustiçados e vivendo em pretensas subcondições inclina-se a uma narrativa do "eles e do nós" para reforçar a ideia de resgate e justiçamento feito com um punhado de senhores abandonados em seu país de origem. A história não é assim, e relendo aqui as próprias perguntas que enviei a Omara, nada parece tão redutor, simplista e estruturalmente banhado de preconceito do que deduzir que Wim Wenders, Ry Cooder, o Carnegie Hall ou qualquer agente não cubano seja necessário para atuar como um legitimador e, cinematograficamente, um salvador desta geração. Quando fazemos isso, mesmo com o coração cheio de afeto, subjugamos no microcosmo a independência de centenas de grandes histórias de vida e, no macro, a existência autossuficiente de uma cultura inteira.
A miopia desse circuito mental não é de origem política nem ideológica, antes que esse radar tão sensível passe a dominar a discussão. Ela diz respeito à construção de uma ideia de glória artística em nosso imaginário que começa torta e vai entortando cada vez mais: a saga dos Buena Vista parte da "descoberta" de Ry Cooder dos senhores cheios de musicalidade vivendo em casas precárias de Havana, uma cidade em ruínas. Avança pela valorização de seus cantos resistentes e sobreviventes às suas realidades e termina com a retirada dessas pessoas de seus lugares para dar-lhes, enfim, a redenção de um concerto grandioso no Carnegie Hall de Nova York e um álbum digno. Omara chega a chorar no palco do Carnegie e Ibrahim, Rubén, Eliades Ochoa e Compay, assim que terminam o concerto, preparam-se tristemente para voltar a suas vidas cubanas.
Há benefícios que precisam ser creditados ao projeto. Muitas vidas da velha-guarda cubana foram de fato modificadas, com os álbuns que passaram a lançar e as turnês que muitos deles não deixaram mais de fazer. Alguns ritmos originários, como o son, passaram a ser investigados com mais atenção, ampliando o entendimento musical cubano para além do bolero e do chá-chá-chá. E mesmo que o governo de Cuba jamais tenha feito uma aferição sobre isso, a maior parte do aumento das divisas trazidas pelo turismo pós-1996 se deu graças ao Buena Vista Social Club. Prova disso são as centenas de músicos de rua pelas praças de Havana e mesmo de Santiago tocando Chan Chan, a Garota de Ipanema reconduzida ao estrelato pelo Buena Vista.
Os problemas, contudo, estão na segunda camada. A glória de Ibrahim Ferrer, Omara Portuondo, Eliades Ochoa, Compay Segundo e Rubén González foi vivida não no Carnegie Hall, mas ali mesmo, em Cuba. As plateias de Omara eram efusivas desde sua aparição, menina, com o Cuarteto d'Aida ou ao lado do rei Nat King Cole; Compay Segundo se tornou segundo justamente por fazer parceria com a primeira voz, Lorenzo Hierrezuelo, a partir de 1947, formando uma das duplas cubanas mais bem-sucedidas de seu tempo, Los Compadres; Rubenzito González formou com Lilí Martínez e Peruchín um trio de pianistas virtuosos que elaborou a linguagem do mambo e levou as primeiras distorções jazzísticas ao piano cubano; e Ibrahim Ferrer, um ex-músico de rua, cantou por 40 anos ao lado do fervilhante grupo Los Bocudos. Mas, exceto Omara, todos eles já estão mortos e enterrados como se apenas tivessem existido a partir e por causa das benesses de um projeto que, um dia, os tirou de sua terra arrasada para lhes mostrar as maravilhas do Primeiro Mundo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.