A portaria publicada nesta sexta-feira (5) que suspende a análise de projetos que buscam recursos da Lei Rouanet em cidades e Estados com restrições de circulação e atividades econômicas gerou indignação de representantes e profissionais da cultura. O Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura publicou uma carta de repúdio dizendo que a medida penaliza o setor, provocando a interrupção do fluxo de propostas desnecessariamente. O comunicado relembra que o prazo de tramitação de um projeto na Secretaria Especial de Cultura é de, no mínimo, 90 dias.
"O Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura sempre apoiou as medidas sanitárias, sociais e econômicas adotadas pelos nossos governantes, compreendendo que salvar vidas é a prioridade. Contudo, entende que a análise dos projetos e suas publicações não representam ameaça às medidas de isolamento social adotadas pelos entes federados, mas poderão afetar a retomada do segmento quando a pandemia estiver sob controle e as atividades presenciais forem permitidas", diz a nota.
Uma das pessoas que assinam o documento é a secretária de Cultura do Rio Grande do Sul, Beatriz Araujo. O texto publicado encerra com uma declaração de autoria dela, conforme explicado pela assessoria da Secretaria Estadual da Cultura (Sedac).
"É estarrecedor acompanhar movimentos desta natureza, oriundos de instituição que tem como missão o fomento à cultura, principalmente em meio ao caos social e econômico no qual nosso país se encontra", diz.
O setor político também já está se movimentando para tentar derrubar a portaria. Durante a manhã, a deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ) protocolou um projeto de decreto legislativo pedindo a suspensão do texto.
"Na prática, (a portaria) incentiva as atividades presenciais em grave momento da pandemia e se nega a analisar aquelas que poderiam se realizar de forma segura e em benefício do setor e da sociedade (...) De forma autoritária e injustificada, a medida atenta contra a cultura, contra a saúde e contra a Constituição", defende a parlamentar no texto.
A portaria nº 124 diz que "só serão analisadas e publicadas no Diário Oficial da União as propostas culturais, que envolvam interação presencial com o público, cujo local da execução não esteja em ente federativo em que haja restrição de circulação, toque de recolher, lockdown ou outras ações que impeçam a execução do projeto".
A medida é válida por 15 dias, contando a partir desta sexta, podendo "ser prorrogada ou suspensa" e dependendo da manutenção ou não das medidas restritivas. O documento leva a assinatura de André Porciuncula, secretário da subpasta de Fomento e Incentivo à Cultura.
No Twitter, Porciuncula reforçou a motivação da decisão.
"Como querem realizar eventos com restrição? Sejam minimamente coerentes, se é para ficar em casa, então não tem verba pública para projetos que geram aglomeração", escreveu. "Não entendi, não é para ficar em casa? Como querem que aprovemos propostas que geram aglomeração?", disse em outra publicação.
A redação da portaria, porém, não deixa claro se serão avaliados projetos alternativos com área de atuação em cidades e Estados que estão sob medidas restritivas por conta da covid-19. Em publicação no Twitter, a Secretaria Especial da Cultura disse que "a ideia é priorizar a análise das propostas culturais que possam ser executadas, como reformas de museus, patrimônios tombados, eventos online e etc".
A produtora cultural Luka Ibarra avalia que alterar a Lei Rouanet para se adaptar à crise do coronavírus é algo natural e esperado. O texto publicado nesta sexta, porém, é diferente. Ela avalia o decreto como uma resposta do governo federal aos governadores, que se manifestaram de maneira contrária às decisões do Presidente da República, Jair Bolsonaro.
Dedé Ribeiro, que também é produtora cultural, lembrou que um projeto com interação com o público demora para ser executado. Ela estima um prazo de pelo menos seis meses após a aprovação da proposta para que se encerre a captação de recursos, realizem-se ensaios, entre outros.
— Nada justificaria que eles tivessem agora dizendo: "Não, não vamos aprovar para evitar o contato com o público". Teria lógica caso se imaginasse que os projetos fossem realizados rapidamente — disse em vídeo publicado em seu canal do Youtube. — Deveria ser: "Não serão aprovados os projetos que têm contato presencial". Isso aí não faz nenhum sentido — acrescentou.
Dedé opina que o movimento é reflexo do desmonte da cultura pelo governo, que acabou fazendo com que a secretaria estivesse com mais projetos do que consegue dar conta de avaliar. Esta seria uma forma de reduzir o fluxo das propostas que chegam.
Luka, por sua vez, aponta que o texto incentiva que as pessoas façam projetos presenciais, podendo gerar aglomerações e, por consequência, aumentando o contágio pelo coronavírus. Por fim, ela diz que esta é mais uma maneira de desconstruir o pensamento da cultura como um nicho de mercado.
— É uma desvalorização constante da cultura. E ainda sempre colocando em detrimento, como se o artista fosse um aproveitador, como se quisesse pegar o dinheiro público, que na verdade nem vem do caixa público, para ficar bem durante a pandemia. Como se desse para enriquecer com projeto — diz. — Não me diz que o que eu faço é hobbie. Não me diz que o que eu faço tem de ser vinculado a um preceito religioso ou cultural, porque a arte é transformadora. — acrescenta.
O setor da cultura ficou extremamente fragilizado durante a pandemia, dado o seu caráter aglomerador por natureza. Diversos trabalhadores da área tiveram de se readaptar para sobreviver financeiramente ao longo de 2020, mas, em geral, a tarefa não tem sido fácil. Cinemas, casas de espetáculos, teatros, entre outros locais vem fechando suas portas definitivamente por não terem fundos para se manter.
— Qualquer tipo de projeto que possa ser financiado de forma alternativa contribui para a sobrevivência de um setor inteiro. Mas aí o projeto nem vai ser analisado. E você pode perder um patrocinador em potencial porque eles não vão nem ler. E aí não interessa se eu estou provocando aglomeração ou não, porque o projeto não vai nem ser lido — aponta Luka.
A reportagem também contatou a Secretaria Municipal de Cultura, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.