Os quatro episódios do documentário "Jeffrey Epstein: Poder e Perversão", da Netflix, começam sempre com a mesma mensagem: "Esta série contém descrições explícitas de abuso sexual de menores que podem incomodar alguns telespectadores". E o que vem a seguir não apenas incomoda, estarrece.
A narrativa da série tem um mérito peculiar: apresentar gradualmente o tema da perversão sexual, enquanto desconstrói o mito do bilionário.
No começo, Epstein parece mais um endinheirado, com amigos importantes, fazendo uma bobagem pontual. Bem-sucedido, tem apartamentos nos endereços da elite de Nova York e de Paris, fazenda no Novo México, casa no pedaço restrito de Palm Beach e até uma ilha inteira no Caribe.
Uma jornalista descobre que ele abusou de menores de idade anos antes e inclui entrevistas com as vítimas num perfil que seria publicado na festejada revista Vanity Fair. O texto sai, mas os bastidores não vêm a público, e fica claro que Epstein agiu para que o trecho sobre sexo com menores fosse excluído da reportagem.
Daí para a frente, só piora.
Os casos de assédios e estupros vão sendo progressivamente apresentados até ficar claro que Epstein sempre fora um predador pedófilo. Havia abusado de dezenas, aparentemente centenas, de menores de idade.
Pelo descrito no documentário, por mais de 20 anos, ele construiu um esquema de pirâmide sexual ludibriando e intimidando emocionalmente crianças e jovens.
Ter muito dinheiro, o que lhe permitia pagar pelos advogados mais astutos, não explica totalmente por que ficou tanto tempo incólume. É possível dizer que também se safou amparado na cultura do machismo, que transformava suas vítimas em prostitutas.
Um trunfo foi a poderosa rede de influência empresarial e política que ele teceu em torno da figura do bilionário vencedor. O mito ora deslumbrava, ora intimidava. Em momentos derradeiros, ajudou a burlar a Justiça a seu favor.
Epstein sabia que estava num clube fechado. Fazer fortuna até a casa dos bilhões é para poucos. A revista Forbes, que faz o mais conceituado rankings global de riqueza pessoal, identificou 2.095 bilionários neste ano.
Relatos em livros e filmes mostram que, para chegar ao pico da pirâmide social, muitos nem tinham o privilégio da herança. Foi preciso ser sagaz, visionário, empreendedor e, não raro, pragmático e duro em suas decisões e cobranças. Steve Jobs é o exemplo mais emblemático dessa dicotomia vencedora.
Bilionários que cruzaram a linha entre certo e errado - e foram presos - têm em comum uma mistura de ganância, excesso de autoconfiança e convicção na impunidade.
Nunca se soube de onde veio a fortuna de Epstein - e seus pares ricos não se preocuparam em checar. O documentário, porém, detalha a maestria com que ele usou o poder imaginário dessa figura, sem dispor dos atributos dos melhores bilionários e extrapolando as deficiências dos que tiveram problemas com a lei.
Epstein foi recebido como um igual pela elite financeira de Wall Street, mas forjou diploma e usou charme para ingressar e galgar postos no mercado financeiro.
Ele aplicou golpes e até teria participado de um esquema de pirâmide. Nem de longe tinha o conhecimento de outro bilionário afeito a pirâmides, Bernie Madoff, autor da maior fraude financeira dos Estados Unidos. No entanto, enquanto Madoff pegou 150 anos de cadeia, Epstein nem foi acusado pelos comparsas, que temiam que ele conseguisse ludibriar as autoridades com seus encantos.
A capacidade para envolver os outros é um atributo no mundo dos negócios. O empresário Eike Batista é um exemplo brasileiro de até onde se vai com carisma elevado. O livro "Tudo ou Nada", da jornalista Malu Gaspar, descreve bem como ele ergueu um império apenas com autoconfiança e projeções.
Seu grupo X, porém, desmoronou. Eike foi preso mais de uma vez na Operação Lava-Jato. Nesta semana, foi condenado a oito anos de prisão por manipulação do mercado financeiro. O empresário pode recorrer em liberdade.
Epstein, descrevem seus colegas, tinha mais do que carisma. Era um manipulador nato. É isso que explica, por exemplo, nunca ter sido denunciado por roubar Leslie Wexner, fundador da L Brands, que controla marcas como Victoria's Secrets.
Wexner admitiu publicamente, em 2019, ter ficado em silêncio por sentir vergonha.
Epstein foi mais genial ainda ao circular e se deixar fotografar ao lado dos expoentes do poder político e econômico. Na lista estiveram Donald Trump, hoje presidente do Estados Unidos, o ex-presidente nrte-americano Bill Clinton e o príncipe Andrew, terceiro filho da rainha Elizabeth 2ª.
Essa exposição nem sempre dá certo. Joesley Batista, outro bilionário brasileiro, usou essa estratégia. Chegava a pedir a amigos para ser apresentado a empresários conceituados e integrantes do governo.
Joesley buscava caminhos para fortalecer seu grupo. Algumas dessas relações levaram ao pagamento de propinas, investigações policiais e uma das mais controversas delações feitas por empresários no Brasil.
Epstein usou as amizades com outro fim: criar um escudo protetor para intimidar tantos as suas vítimas quanto os investigadores, que insistiam em levantar provas de seus crimes sexuais.
Funcionou por anos. Talvez ele estivesse solto até hoje. Mas foi vencido por um fator que nem o mais rico e poderoso dos homens consegue controlar: a evolução cultural.
O movimento #MeToo criou uma onda de denúncias contra assediadores e estupradores nos Estados Unidos. Reunidas as provas, as autoridades foram obrigadas a julgá-lo e condená-lo. Como bem alerta o documentário, a descrição dos abusos a menores finalmente incomodou.
Epstein morreu na prisão em agosto de 2019.