Ainda que temporária, a proibição judicial a um programa de Natal do humorístico Porta dos Fundos pertencente ao catálogo da Netflix reverberou, abrindo uma ampla discussão sobre os caminhos da liberdade de expressão no país. No início da noite desta quinta-feira (9), uma decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou uma liminar que determinava a retirada do especial A Primeira Tentação de Cristo do catálogo do serviço de streaming.
A suspensão do programa havia sido determinada por uma liminar promulgada quarta-feira (8), pelo desembargador Benedicto Abicair, da 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Na atração, Jesus (Gregório Duvivier) é mostrado chegando à ceia de Natal de sua família após retornar do seu exílio de 40 dias no deserto, acompanhado de um namorado que conheceu na viagem, Orlando (Fábio Porchat).
O pedido havia sido formulado pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, uma entidade católica com sede no Rio e que já havia entrado com pelo menos três ações anteriores pedindo indenizações por danos morais e a retirada de vídeos do Porta dos Fundos do YouTube. Esta foi a primeira vez que o pedido foi atendido. Dias Toffoli já havia suspendido determinação semelhante no caso da censura a um quadrinho dos Vingadores na Bienal do Rio.
A proibição durou pouco mais de 24 horas, oficialmente. Mas foi o suficiente para fazer eclodir um debate sobre censura e liberdade de expressão, tanto na mídia como nas redes sociais.
Os autores da ação afirmam que o processo foi movido amparado no fato de que nenhum direito individual é absoluto. O presidente da entidade, Pedro Affonseca, se manifestou em um vídeo divulgado pelo canal oficial do Centro Dom Bosco no Youtube:
— Não se trata simplesmente de uma defesa dos fiéis, é uma defesa simplesmente daqueles que creem em nosso senhor Jesus Cristo, dos fiéis católicos. É uma defesa da fé, uma defesa de Deus. Alguns até argumentam: Deus não precisa de ninguém que o defenda. Isso é evidente, Deus é inatingível. Mas Deus deve ser adorado, deve ser amado, ele não pode ser ofendido, não pode ser objeto de piadas, não pode ser transformado em um homossexual. É ridículo, é pueril — argumentou.
“Não se descuida da relevância do respeito à fé cristã (assim como de todas as demais crenças religiosas ou a ausência dela). Não é de se supor, contudo, que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede há mais de 2 (dois) mil anos, estando insculpida na crença da maioria dos cidadãos brasileiros”, afirmou o ministro Dias Toffoli na decisão que autorizou a Netflix a exibir o episódio e derrubou a liminar anterior.
Discussão
Algumas das vozes mais críticas à proibição foram registradas na área jurídica, algumas delas vindas do próprio STF.
— Isso é impensável. Censura não cabe num Estado democrático de Direito. Você proibir a expressão porque ela encerra uma picardia contra esta ou aquela religião? Calma, estamos no século 21 — diz o ministro Marco Aurélio Mello.
Para ele, o caso vem se juntar a outros que sinalizam uma tendência autoritária em andamento.
Para Gilson Dipp, ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), embora o conteúdo da obra possa sim ser considerado chocante, isso por si só não validaria a proibição.
— É claro que estamos falando de um país em que hoje os costumes tradicionais estão cada vez mais arraigados, em virtude da própria posição do presidente da República. Mas eu vi o especial, e confesso que pessoas da minha geração ficam um pouco surpresas com a abordagem. Mas me parece claramente um ato de censura. O programa não viola de forma ostensiva nenhum dos princípios básicos previstos na Constituição. É uma comédia, e por mais que seja um pouco inusitada ou chocante, proibir é censura.
Para Eduardo Carrion, professor titular de Direito Constitucional na UFRGS e da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), a proibição vai contra o espírito liberal que deveria pautar o debate de liberdade de expressão.
— Vivemos numa conjuntura de exacerbação de sentimentos, em que todos veem eventualmente o adversário não como um adversário propriamente dito, mas como inimigo. O que cria um clima de tensão e de excessos. O que observamos na atualidade, em função da conjuntura e do clima, é que retrocedemos a um período muitas vezes anterior ao século 18.
Já para Fernando Schüler, filósofo e professor do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, o foco da discussão está distorcido.
— Primeiro, deixo registrado que a minha postura pessoal é completamente contrária a qualquer tipo de suspensão. Mas a questão é que a legislação brasileira tem um problema. Em que pese a Constituição consagrar a liberdade de expressão como direito, você tem muitas legislações que a restringem. E ao se admitir que a liberdade de expressão possa ser restrita, começa-se a admitir a censura, de acordo com conveniências políticas. Você tem dois campos e, em geral é comum que as pessoas contrários à censura num caso sejam favoráveis em outro — afirma.