RIO DE JANEIRO, RJ, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Vamos fazer Stonewall na Bienal", disse o mediador do debate "Literatura Arco Íris", Felipe Cabral. Rememorava a onda de protestos que tomou Nova York meio século atrás.
A ideia foi aclamada por todos, e a sessão de autógrafos que os autores convidados fariam acabou sendo cancelada.
De lá dezenas de pessoas seguiram nesta noite de sábado (7), pavilhões afora, num protesto contra a censura à literatura LGBT defendida pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, e autorizada pela Justiça.
Leram trechos da Constituição que proíbem "censura de qualquer natureza". À frente do grupo estava Michel Uchiha, organizador da coletânea LGBT "Indestrutível".
"Onde houver ódio, que eu leve amor", gritou Uchiha, acompanhado em coro. São trechos da "Oração de São Francisco".
Os manifestantes bradavam contra o prefeito -"ei, Crivella, vai tomar no cu!"- e gritavam "não vai ter censura".
Apontavam que o município não tem competência para vetar o conteúdo de obras literárias, como o prefeito sugere.
"Esse é o momento que a gente vai entrar no território deles", afirmou Michel. Falava dos fiscais autorizados a entrar na Bienal para verificar se há qualquer obra com conteúdo impróprio para menores.
Crivella entende que o beijo entre dois homens completamente vestidos numa HQ seria um atentado ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
O grupo terminou seu ato em frente à sala onde a equipe da prefeitura se reuniu com a organização da Bienal. O subsecretário de operações da Secretaria Municipal de Ordem Pública, o coronel Wolney Dias, assistia a tudo da janela. Dias é ex-comandante da Polícia Militar.
Antes disso, durante o debate conduzido por Felipe Cabral, parte do público havia protagonizado um 'beijaço' a pedido do mediador da conversa.
Poucos casais se animaram a trocar bitocas no espaço lotado. A conversa que se seguiu foi mais politizada, com os convidados compartilhando preconceitos que sentiram na pele por serem homossexuais.
"Cada dia é uma bordoada. Mas é isso aí, a gente tá resistindo", disse PedroHMC, 34, ativista LGBT que populariza a causa com seu canal no YouTube "Põe na Roda".
Ele contou que, quando criança, a mãe jogava fora o pouco de literatura LGBT que armazenava. Décadas depois, acha que sua galera consegue cada vez mais visibilidade, e por isso incomoda. "Até reação do Crivella é a prova disso. Agora apareceu mais do que nunca, na primeira página da Folha de S.Paulo", afirmou.
A capa da Folha de S. Paulo de sábado trouxe a imagem dos dois rapazes que tanto aborreceu o prefeito.
Vitor Martins lançou "Um Milhão de Finais Felizes", mas confessou: por muito tempo foi difícil acreditar que ele teria direito ao seu.
Chegou a passar por uma terapia de conversão na igreja que sua família frequentava, claramente mal-sucedida. Sua mãe descobriu que ele era homossexual lendo seu diário ("eu era esse tipo de gay", brincou sobre o hábito de escrever um).
Mas depois entendeu e aprendeu a respeitar a orientação sexual do filho. Os dois passaram até assistir à série musical "Glee", contou.
Em sua obra, Vitor inseriu um personagem acima do peso, categoria na qual se encaixa. Uma impressão que teve por muito tempo: "Ser gay e gordo? Você definitivamente vai morrer sozinho duas vezes, coberto de Doritos pelo seu corpo".
Tathi Machado, outra participante da mesa, brincou que chegou a sentir pena da mãe, coitada, que penava para entender a sexualidade da filha. A certa altura, recordou, sua namorada lésbica virou um homem transexual.
Aí disse: "Mãe, quer saber o que mais, esquece nomenclatura, esquece rótulo."
A participação da audiência elevou a voltagem política do encontro. Uma mulher pediu a palavra: "Por causa de um beijo, um beijo gay, eu penso: quero uma sociedade que não tenha beijo gay, lésbico, hétero, trans. Que tenha o beijo, ponto. E qualquer diferenciação disso seja só preconceito".
"Se é nosso beijo que incomoda, vamos beijar lá fora", continuou. Foi o primeiro sinal de que o debate se metamorfosearia numa marcha até o pavilhão onde fiscais da Prefeitura do Rio se reuniram para discutir a vistoria da feira literária.
Vitor se disse "extemamente 'destroçalhado' internamente por tudo o que tem acontecido nos últimos dias".
"Quebra meu coração em 300 mil pedaços" ter pessoas que não possam ter um livro como o seu em casa, muitas vezes por aversão na família à orientação sexual dos filhos.