Um bebê deixa o útero da mãe. Em seguida, já crescida, a garota é interrompida enquanto conta e reconta sem parar o número de hastes metálicas de uma luminária. Levada a um consultório, recebe o diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo, déficit de atenção e bipolaridade, entre outros distúrbios.
A rápida sequência de cenas, dos minutos iniciais da série Euphoria, foi suficiente para que Bruna Nascimento, 24 anos, desligasse a TV.
— Vi até ela dizer que tem transtornos, alguns parecidos com os meus.
Para descobrir se era seguro seguir adiante, ela recorreu à internet. Criou um post num grupo de cinema do qual faz parte no Facebook. "Alguém sabe me informar se a série é tranquila ou se tem algum gatilho como automutilação ou suicídio?", questionou.
O caso dela não é incomum. Muitos jovens têm buscado em redes sociais informações sobre séries, filmes e livros antes de ver ou ler, querendo saber se trazem gatilhos emocionais —conteúdos com potencial de causar aflição ou sofrimento em quem vê.
Os temas com os quais Nascimento evita entrar em contato são automutilação, suicídio, bipolaridade e mania de perseguição. Ela conta que a ideia de se mutilar surgiu da ficção, depois de ler Objetos Cortantes, de Gillian Flynn.
— Comecei quando minha mãe morreu. No livro, isso fazia a dor da personagem sumir. Naquele momento de luto, me cortar trazia um alívio momentâneo — afirma.
Fã de autores como Stephen King e Charles Bukowski, hoje ela se mantém alerta ao assistir a um filme, série ou ler um livro, por recomendação do psiquiatra.
— Há um tempo, assisti à série Sob Pressão, em que a personagem se mutilava. Foi como se viesse um grito dizendo "volta a fazer, volta a fazer". Tanto é que voltei.
A presença de possíveis gatilhos vem fazendo com que conteúdos sobre temas como suicídio sejam adaptados às emoções do público.
Neste mês, a Netflix anunciou que removeria da série 13 Reasons Why uma cena que mostrava a personagem Hannah cortando os pulsos. Lançada em 2017, a produção foi criticada porque, supostamente, poderia incentivar o suicídio — estudos indicaram que houve aumento no número de casos após a estreia, embora não seja possível relacioná-los ao programa.
Caminho diferente seguiu o filme nacional Yonlu, baseado em um caso real. A produção optou desde o início por não mostrar o suicídio de seu protagonista adolescente.
— Em vez de avisar sobre o gatilho, reconstituímos em cena uma entrevista real do terapeuta do Yonlu, que reflete sobre o tema — conta o diretor do longa, Hique Montanari.
Estudados há anos em universidades e blogs e foco de polêmicas sobre sua eficácia, os "trigger warnings", ou alertas de gatilho, são avisos prévios voltados a quem sofre com traumas e distúrbios.
Em grupos no Facebook, avisos do tipo podem ser encontrados em vários posts. Antes de apertar play, é possível saber que Euphoria fala de drogas, transtornos psicológicos e automutilação.
Até a protagonista da série, a atriz Zendaya, avisou sobre o conteúdo. "Há cenas gráficas, difíceis de assistir e que podem ser gatilhos. Só veja se sentir que pode lidar com isso", postou no Instagram.
Uma jovem de 17 anos diz ter dúvidas sobre ver It: A Coisa 2 porque o longa, que deve estrear em setembro, pode conter cenas de abuso sexual. O receio tem origem num trauma da infância.
— Aos 12 anos, fui ameaçada de estupro. Nunca esqueci a voz dele: "Eu sei onde você mora, é melhor você ficar trancada em casa, cachorrinha, porque se eu te pegar na rua...". Desde então, sinto medo quando um homem se aproxima.
Conteúdos de ficção podem atingir pessoas vulneráveis porque neles ocorre um forte processo de identificação com os personagens, afirma o psiquiatra Neury José Botega.
— Certos livros podem estimular uma pessoa a conversar com um terapeuta, mas a regra é que, quando alguém não está bem, não é qualquer coisa que se deve incentivar.
Em alguns casos, o alerta de gatilho substitui informalmente a classificação indicativa.
— Antes ele só indicava a idade. Hoje [a partir de lei de 2018], há descrições que alertam para temas fortes retratados nas obras — explica Eduardo Nepomuceno, chefe do serviço de classificação indicativa do Ministério da Justiça.
Pesquisas recentes questionam os efeitos positivos dos avisos de gatilho. Dois experimentos de universidades da Nova Zelândia e da Austrália apontam que alertas têm pouco efeito prático. Em ambos, pessoas expostas a conteúdos aflitivos tiveram reações semelhantes, independentemente de terem sido avisadas previamente ou não.
Outro estudo, da Universidade Harvard, divulgado em julho, concluiu que avisos de gatilho aumentam a ansiedade em sobreviventes de traumas.
Segundo a psicóloga Karen Scavacini, coordenadora de um instituto de prevenção ao suicídio, o alerta é positivo, mas seu efeito pode ser diluído caso seja aplicado em situações em que não é necessário.
— Quando você avisa, dá a escolha de ver ou não. Quem olha para a foto de um acidente pode não sentir nada, mas alguém que tem um trauma pode reviver lembranças negativas — afirma.
Scavacini acrescenta que o uso do mecanismo não pode encerrar o diálogo sobre temas sensíveis.
— Inevitavelmente haverá cenas de violência e racismo, o que é válido, só não é recomendado para todos. Hoje há liberdade grande para se falar em temas tabu. Mas avisar é importante, mostra que a pessoa se põe no lugar do outro.
Scavacini diz que a Netflix está correta em retirar a cena, já que segue orientação da Organização Mundial da Saúde de não detalhar métodos de suicídio.
Nascimento não sabe ainda se um dia poderá ver conteúdos com temas sensíveis.
— Não sei o que pode acontecer com meu corpo nem com meu cérebro.