Houston – O 2nd Ward é cheio de tentações para o escritor e chef Adán Medrano, que mora alguns quilômetros a sudeste dali.
Isso porque no bairro mexicano-americano estão as tortillas quebradiças, perfeitas, do Doña María Mexican Cafe, preparadas artesanalmente com farinha ou milho, prontas para ser enroladas ao redor dos ovos combinados com machacado, uma carne seca desfiada bem fininho; tem também os tamales assados do Original Alamo Tamales, que nem constam no cardápio, com a casca escurecida e as bordas carameladas de masa e carne, e tem a Taqueria Chabelita, onde a dona, Isabel Henriquez Hernandez, prepara feijão carioca cujo sabor defumado intenso não vem da banha, mas sim do cozimento lento em panela bem quente.
Para Medrano, que foi criado em San Antonio com gerações de parentes de ambos os lados do Rio Grande, isso tudo é comida confortante, é sua herança culinária, sua "comida casera".
"Só por favor não chame de tex-mex. Prefiro dizer que é mexicana texana, pois é a descrição que serve para mim também", diz.
Segundo Medrano, de 71 anos, cujo segundo livro de receitas, "Don't Count the Tortillas: The Art of Texas Mexican Cooking", será publicado em junho pela Texas Tech University Press, o termo descreve a culinária tradicional do sul do estado. É a comida feita pelas famílias semelhantes à sua desde antes de o Rio Grande marcar a fronteira, quando o Texas fazia parte do México, e muito antes disso.
Tex-Mex é uma culinária que deve ser respeitada e valorizada; só que seus padrões, aquela coisa de fajitas de queso e combo com um monte de frango e camarão, não têm nada a ver com aquele pessoal cujas raízes no Texas remontam a cerca de doze mil anos.
ADÁN MEDRANO
escritor e chef
Não o levem a mal: "Tex-Mex é uma culinária que deve ser respeitada e valorizada; só que seus padrões, aquela coisa de fajitas de queso e combo com um monte de frango e camarão, não têm nada a ver com aquele pessoal cujas raízes no Texas remontam a cerca de doze mil anos."
"Não é nossa comida; não comemos assim", afirma Medrano, que passou boa parte de uma década trabalhando para definir sua culinária e, com isso, inspirando um número cada vez maior de texanos mexicanos.
Aqui em Houston você encontra esse tipo de comida nas casas em que Medrano é frequentador assíduo, e nas que servem almoço em San Antonio West Side, como o Old Danny's Cocina, ou as mais novas, como El Puesto No. 2, no fim da rua. E também no Maria's Restaurant em McAllen, no centro, e no Cafe Amiga de Brownsville, ambos comandados pelas netas de seus fundadores.
São pratos como o frango cozido com abobrinha e milho, a sopa de tomate com macarrão chamado fideo, o refogado de camarão e cacto com uma mistura de pimentas vermelhas desidratadas, é o picadillo de carne simples, o cozido de carne com batata chamado "carne guisada", ambos temperados sutilmente com uma pasta de pimenta preta em grão, alho e cominho, que Medrano descreve como a versão texana mexicana da Santíssima Trindade cajun.
É o que Juan Hernandez, do Doña María Mexican Cafe, sempre descreveu como "a comida da mama" – no caso, sua mulher, Anna Hernandez, que cresceu a um quarteirão do restaurante e é uma das sócias. Juan Hernandez jamais descreveria os pratos que ela prepara como tex-mex; de fato, foram eles que inspiraram o surgimento da vertente.
Tudo começou no início do século XX, quando a comida caseira mexicano-americana começou a ser adaptada em restaurantes "comandados por anglo-saxões para um público idem", diz Medrano. Nos anos 70, os escritores começaram a se referir a essa culinária híbrida como tex-mex: feijão refogado com um caldo sedoso feito massa de panqueca; chili preparado com temperos em pó e caldo de carne em vez da "carne con chiles" à base de pimenta vermelha desidratada; fajitas com qualquer outra coisa menos a fraldinha que lhe deu o nome; e uma porção extra de queijo em tudo.
Medrano teve a ideia de diferenciar a cozinha texana mexicana do tex-mex após se matricular no curso do Instituto Culinário Americano em San Antonio, em 2010, depois de atuar como produtor e roteirista de TV, oferecer bolsas a ONGs de artes e projetos educacionais e fundar o festival de cinema latino de San Antonio, em 1977. "Comecei o curso por diversão, mas acabei tendo uma epifania", comenta. Depois de décadas na obscuridade, sua comida precisava não só alguém que a promovesse, mas ganhar um nome.
Ele não queria usar a palavra "tejano" porque muitas vezes era usada para destacar as origens coloniais espanholas e não a herança nativa; além disso, o uso do "j" em vez do "x" (em texano) é uma prática europeia.
E bolou um termo melhor depois de saber da existência das diferentes culinárias regionais mexicanas, percebendo que tinha sido criado em uma versão com características próprias. "Tem a mexicana de Oaxaca, de Jalisco... por que não a do Texas também?", questiona.
Sua pesquisa inicial sobre a história dessa culinária virou seu primeiro livro de receitas, "Truly Texas Mexican: A Native Culinary Heritage in Recipes", publicado em 2014.
Desde então, Medrano viaja pela região para cozinhar, fazer palestras em escolas e museus e reunir conhecimento de chefs, antropólogos e pessoas que só cozinham em casa, muitas das quais são citadas em "Don't Count the Tortillas". (Em meados deste ano ele vai até preparar tacos de carne guisada na festa do Quatro de Julho em Moscou.)
Medrano é também o produtor executivo, roteirista e apresentador de um documentário bilíngue ainda inédito, "The Roots of Texas Mexican Food", que deve ser lançado no segundo semestre. O filme se concentra nos sítios arqueológicos e históricos texanos e nas mulheres que foram as primeiras "arquitetas" da culinária.
Sua obra foi muito esclarecedora para restaurateurs como Sylvia Casares, chef famosa de Houston que comanda o Sylvia's Enchilada Kitchen. "Fazia uns vinte anos que eu procurava um jeito de descrever minha comida", diz Casares, que é natural de Brownsville, no extremo sudeste do Texas.
Ela conheceu Medrano depois de recomendar seu restaurante a um repórter local como referência dos sabores tradicionais de sua culinária, principalmente as enchiladas. Sua equipe prepara centenas de unidades por dia, de acordo com a versão texana, ou seja, cada tortilla é banhada em molho de pimenta e suavizada em óleo quente antes de receber o recheio. E a cobertura de queijo por cima? "Tem só um pouquinho, como guarnição", ela explica.
A comida mexicana texana é baseada na culinária dos grupos indígenas nômades que se movimentaram de ambos os lados do rio durante séculos antes da chegada dos espanhóis. "Foi aí que a versão contemporânea começou a tomar forma", explica Ramon Vasquez, membro da nação que também faz passeios no Parque Histórico Nacional das Missões de San Antonio a partir da perspectiva da culinária nativa.
"O que se fazia aqui deu origem àquilo que os texanos comem hoje", conta Vasquez, comentando que foram seus ancestrais que começaram a cozinhar no estilo pedras quentes e fogo de chão, geralmente preparando as carnes que os espanhóis não queriam.
Recentemente, o parque converteu vinte hectares de sua área em terras aráveis, onde Vasquez espera poder ajudar a plantar espécies nativas, muitas das quais ganham destaque no novo livro de Medrano.
Por causa dessa história rica e vibrante é que San Antonio recebeu da Unesco o raro título de Cidade da Gastronomia, em 2017. A prefeitura, aliás, contou com Medrano para ajudar a lançar sua candidatura.
Tal reconhecimento é uma reviravolta e tanto – afinal, as missões ficam poucos quilômetros ao sul da praça onde as mulheres mexicanas texanas foram impedidas de vender carne con chile em barraquinhas ao ar livre, no início do século XX, enquanto o prato foi "transformado" no famoso chili. Foi ali também que Otis Farnsworth, natural de Chicago, abriu seu Original Mexican Restaurant, que fez um sucesso estrondoso servindo o que passou a ser conhecido como tex-mex.
Hoje, o restaurante de Farnsworth pode até ser acusado de apropriação cultural, ou o que Medrano chama de "pilhagem cultural" – sim, porque ele fica bravo com a falta de respeito por sua cultura e as muitas maneiras como os mexicanos-americanos foram injustiçados ao longo da história.
Em geral, porém, ele é apaixonado por sua culinária, que o conquista toda vez que vê uma tortilla tostando na chapa ou sente o aroma combinado de pimenta-do-reino e cominho. "Precisamos compartilhar a beleza da comida; ao fazê-lo, deixamos o mundo mais belo", conclui.
Por Rachel Wharton