Além da "punhalada" de Fernando Pessoa (leia aqui, na outra parte desta reportagem que marca os 80 anos da escritora, comemorados neste sábado, 15/9), houve outra inflexão na vida de Lya Luft durante seus anos como estudante de Letras na PUCRS. Logo no primeiro semestre, conheceu o então Irmão Arnulfo, professor de Redação em Língua Portuguesa – o linguista e gramático Celso Pedro Luft, que viria a se tornar seu primeiro marido. A aproximação se deu com Celso como mentor da aluna 17 anos mais nova.
– Ele percebeu que eu gostava de ler, mas que era uma leitora caótica, desde teatro grego até romances franceses modernos sem muita ordem. Ele foi a primeira pessoa que me fez ler com disciplina. Me emprestava livros e me pedia um ensaio de três páginas. Também me ensinou o valor da concisão, de cortar palavras supérfluas.
Quando ela cursava seu último ano de Letras, ambos se declaram um para o outro. Celso abandonou a vida religiosa e pediu dispensa de seus votos, e ambos se casaram em 1963. Celso já havia publicado alguns livros, mas, depois de abandonar a vida religiosa, logo se tornaria o maior gramático de seu tempo. Lya, nesse ínterim, passou a conviver com autores e intelectuais também mais velhos, como Mauricio Rosenblatt, Erico Verissimo e Guilhermino César.
– Brinco que pulei uma geração. Minha turma se tornou aquela, e eu era tímida, mais jovem do que todo mundo, ia nas reuniões na casa do Erico e não abria a boca – relembra.
À janela de Erico Verissimo
Erico, aliás, era um ídolo antigo da jovem autora, que havia lido e se maravilhado, em criança, com A Vida de Joana D’Arc, escrito por ele. Quando Lya tinha seis anos, durante um veraneio da família em Torres, ela e seu pai, Arthur, passaram pela janela de um prédio de onde vinha o som sincopado de uma máquina de escrever. O pai de Lya parou e apontou: "Sabe quem está aí? Erico Verissimo, aquele escritor de que você tanto gosta". Lya criou o hábito de passar todos os dias pela janela à espera de ouvir o autor de Clarissa datilografando. Anos mais tarde, ela contaria a história a Erico, e convidaria ele e sua esposa Mafalda para serem padrinhos de seu segundo filho, André. Além de André, Lya e Celso tiveram Suzana e Eduardo.
Lya se lançou no ofício de tradutora, que exerceria paralelamente à carreira literária até o início deste século. Verteu para o português quase uma centena de livros do alemão e do inglês, incluindo aí clássicos contemporâneos como Um Campo Vasto, de Günther Grass, Berlim Alexanderplatz, de Alfred Döblin, e A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath. Também passaram por suas mãos obras de Thomas Bernhardt, Virgina Woolf, J.M. Simmel e Stefan Zweig. Em 1963, passou a publicar crônicas semanais no jornal Correio do Povo. Mas não considera seu primeiro período como cronista dos mais frutíferos.
– Eu escrevia umas colunas chatinhas, aquela coisa: ah, eu e minha família, minha casa. Não estava satisfeita, achava aquilo tudo muito cor de rosa, queria fazer outras coisas. Mas sabia que, se fosse escrever o que queria, coisas sobre o lado escuro da vida humana, seriam muito fortes, iam mexer com as pessoas, porque são assuntos que mexem comigo.
O impulso final para seu mergulho na ficção veio após um desastre de automóvel em 1977. Lya passou um ano em recuperação de uma comoção cerebral cujos efeitos incluíam gagueira, imobilidade e perda de memória. Ela já havia escrito um livro de contos anos antes e enviado a Pedro Paulo Sena Madureira, um dos mais proeminentes editores brasileiros. Ele respondeu que ela deveria se dedicar a um romance. O conselho voltou várias vezes à sua mente, e assim que havia assegurado sua recuperação, Lya escreveu As Parceiras (1980 ).
– Aí saiu o livro e, de repente, eu era uma romancista. Comecei a escrever um livro atrás do outro, porque abriu aquela porta, e veio uma enxurrada que estava reprimida, eu escrevia, escrevia, escrevia, lançava um livro por ano, às vezes dois – recorda.
O casamento com Celso Pedro Luft durou até 1985, e ambos se separaram amigavelmente. Lya já passava muito tempo no Rio, envolvida nas atividades de sua então florescente carreira literária. Em uma festa, foi apresentada pela amiga Nélida Piñon ao psicanalista e escritor Hélio Pelegrino. Começaram um relacionamento em 1985 – ele morreria de um ataque cardíaco três anos mais tarde, em 1988. A experiência da breve vida em comum fez Lya escrever os poemas de O Lado Fatal, coletânea que por muito tempo passou fora de catálogo até ser recentemente reeditada. Anos mais tarde, em 1992, Lya retomou seu casamento com Celso Pedro Luft.
E, menos de um ano depois, ele sofreu um AVC. Morreria no fim de 1995.
Lya hoje está em seu terceiro casamento, com o engenheiro de transportes carioca Vicente de Britto Pereira, a quem conheceu há 16 anos. Ambos invertem os respectivos estereótipos regionais. Lya é mais extrovertida e disposta a uma conversa, seja ao vivo ou com amigos no WattsApp. Vicente é introspectivo.
– Nos conhecemos e não nos largamos. Somos duas pessoas mais velhas, cada uma com sua bagagem. Conhecê-lo tem sido uma grande jornada de camaradagem e educação humana. Ele é uma pessoa que me surpreende muito todos os dias.
Os gnomos do pátio de casa
Escritora que fez da passagem do tempo um mote recorrente em seus livros, Lya nunca teve medo de envelhecer. Há anos, inclusive, divagava sobre o que faria para comemorar seus 80 anos. Provavelmente uma festa de encher o salão, reunindo uma multidão. Mas uma tragédia pessoal mudou os planos. Em novembro do ano passado, o agrônomo André Luft, 51 anos, filho do meio de Lya, sofreu uma parada cardiorrespiratória enquanto surfava na Praia do Moçambique, no leste da Ilha de Santa Catarina. Ele atuava em uma empresa de grãos em Moçambique, na África, e estava no Brasil para visitar a família. Era muito ligado à mãe, com quem conversava por WhatsApp todos os dias. Lya se recolheu a seu apartamento no bairro Boa Vista para o luto mais difícil de sua vida.
– Foi uma experiência muito dura. Há uma coisa atávica quando se fala de uma mãe que perde um filho, a sensação é mesmo a de que amputaram um pedaço de mim sem anestesia e sem meu consentimento. Nas primeiras semanas, eu não saía do quarto. Depois fui indo. Acho que, em primeiro lugar, eu devo ter muito amor à vida. Em segundo, embora eu não seja espírita, acredito que algo do espírito da pessoa continua de alguma forma, não sei como. Isso foi algo que também pensei nas duas vezes em que fiquei viúva, que, passado o primeiro horror, a maior homenagem que se possa fazer é não deixar que a morte daquela pessoa te destrua.
Lya hoje enfrenta a perda exercitando a arte de viver o cotidiano. Mantém sua coluna para Zero Hora, mas, fora isso, não chegou a se dedicar a nenhum projeto novo – tinha, antes, a ideia de organizar um volume chamado Coisas Humanas, com as crônicas que já publicou em ZH, mas o projeto parou. A festança foi substituída por planos de uma viagem com o marido. Haverá espaço para uma tradição pessoal: um jantar com nove amigas que há anos se reúnem a cada aniversário de Lya no English Club – e que incluem a médica Themis Reverbel, a jornalista Tânia Carvalho e a artista visual Lou Borghetti, com quem Lya convive há 20 anos e faz aulas de pintura uma vez por semana.
– Sinto-me honrada em saber que ela fez do meu ateliê um espaço no qual se refugia. Ela vem para cá, ficamos só eu, ela e minha assistente, e ela pinta. A Lya não é, obviamente, uma pintora profissional, mas é uma amadora no sentido mais verdadeiro da palavra, ela ama o que faz – diz Lou Borghetti.
A amiga deixa escapar a impressão de que, mesmo aos 80 anos, Lya ainda mantém, após perdas e ganhos, a capacidade de intuir o invisível:
– Na casa dela em Gramado, ela tem certeza de que há gnomos no pátio.