Por Noili Demaman
Doutora em Literatura Brasileira
Depois de muito tempo sem recorrer ao despertador para parar de ler algo, com A Máquina de Fazer Espanhóis, do angolano/português Valter Hugo Mãe, tive de me valer desse expediente; mesmo com um livro excelente nas mãos, a vida anda. Com essa declaração, acredito que meu tributo ao autor e à obra esteja dado. Ademais, a encantadora edição brasileira da Biblioteca Azul, sem entrega da essência do enredo nas orelhas, completa o engrandecimento do livro.
O romance tem como narrador-protagonista António Jorge da Silva, um homem de 84 anos que havia ganhado a vida como barbeiro. Após a morte da esposa, Laura, a filha o coloca num asilo – com o sugestivo nome Feliz Idade – onde faz companhia às (des)venturas de mais 92 idosos e que, sem pieguice alguma, é apresentado como um lugar onde vive “um conjunto de abandonados a descontar pó ao invés de areia na ampulheta do pouco tempo”. Lá o preenchimento de uma nova vaga se dá pela desocupação por motivo óbvio: uma morte. Ao termos um narrador idoso tratando de seu momento presente, mesmo sem ter reconhecida sua legitimidade para narrar – velhos não são mais produtivos, dão despesas e aborrecimentos para os seus –, tem-se, no enredo, uma inovação. Ora eles burlam a realidade e reconstroem vivências com atitudes pueris, ora manifestam o medo da perda da individualidade, da decrepitude, da morte.
Perpassa as memórias, mesmo a dos fatos que desejariam esquecidos, a ditadura portuguesa da repressão Salazarista (entre 1932 e 1968). Essa representação se completa com a vida do narrador (politicamente inerte – humanista despolitizado – restringindo-se à esfera familiar cujo zelo não impediu que o filho sumisse, não vindo nem para o enterro da mãe, e a filha não pudesse dele cuidar) para quem um bom homem é trabalhador, cuida de sua família e não tem inquietação política alguma: um típico bom fascista.
Como se trata de um asilo misto, à medida que a leitura avança, o leitor se pergunta: onde estão as velhas? Sim, porque aos velhos é dada a voz que – mesmo na senil fragilidade – destilam histórias e questionamentos autorais e ações condizentes com os da sua idade.
Infelizmente, a voz das mulheres na narrativa é silenciada. Elas são muito poucas e muito mal representadas: Laura, a mulher/musa, com quem António foi casado por 42 anos, totalmente dedicada ao lar; Elisa, a filha de 49 anos que tem de dar conta de marido, filhos e a culpa de não poder cuidar do pai velho; dona Leopoldina, vítima de chacota por “estar sempre a coçar o cu”; dona Marta, ingênua, lá é colocada pelo marido mais jovem; dona Dores, que recebe o filho deficiente mental para as refeições. Além disso, delas nada mais se conta.
E tem também dona Glória do linho – em moça, costureira – de quem até se espera certo protagonismo ao aparecer como namorada de Anísio (doutor em arte antiga). Expectativa que também não se cumpre; limita-se à patética disputa: se as dores que sente nos pés são maiores ou menores que as do padecimento do senhor Pereira com câncer na próstata.
Cabe dizer que não estou aqui a reivindicar um enredo meu para livro alheio. Nem a querer a presença de mulheres – onde não haveria verossimilhança – como cobraram de Umberto Eco quando escreveu O Nome da Rosa: em um mosteiro beneditino medieval, muito natural que fosse povoado por homens.
O que quero dizer é que parece que teremos de começar tudo de novo. Assim como apontamos que as mulheres precisavam ter mais protagonismo na ficção há tanto tempo, agora que a velhice tenta se legitimar, também na literatura, parece que teremos – novamente – de reivindicar enredos com mulheres velhas protagonistas. Embates políticos, opinião sobre arte e sociedade, lembrança de dramas humanos, confissão de vilanias, tudo isso as mulheres velhas dizem.
Só falta serem levadas a sério.
O LIVRO
A Máquina de Fazer Espanhóis
Após perder a mulher, o barbeiro António passa a viver num lar de idosos. Romance, Biblioteca Azul, 264 páginas, R$ 44 em média. Prefácio de Caetano Veloso.