Quando Krysten Ritter estava escrevendo seu primeiro livro, "Bonfire", sobre um esquema corrupto no interior dos EUA, uma empresa de plásticos com motivos suspeitos e um escândalo ocorrido há dez anos que ressurge das cinzas, percebeu o tipo de gênero em que estava investindo.
Mesmo assim, ela se surpreendeu ao terminar o primeiro esboço do manuscrito e absorver a coisa toda.
"Sim, eu sabia que o livro era sombrio, mas só percebi até que ponto quando li tudo de uma vez, em uma sentada só", diz, com seu ar natural, meio descarado.
Ritter já mostrava uma afinidade por materiais cheios de suspense e meio obscuros como atriz de cinema e TV, interpretando personagens enigmáticas em séries como "Breaking Bad" e "Don't Trust the B - - - - in Apartment 23".
Por isso, caiu de cabeça na personagem-título – cheia de defeitos, mas poderosa – do atual drama da Netflix, "Jessica Jones", uma investigadora lutando para assumir o controle da própria vida ao mesmo tempo em que lambe as feridas psicológicas que sofreu.
"Bonfire", publicado pela Crown Archetype, é um mergulho na versão ficcional da infância interiorana da própria escritora, e um suspense no estilo de seu gênero favorito. Em resenha, a Publishers Weekly o classificou como "uma estreia triunfal" e "um suspense de tirar o fôlego com uma protagonista compassiva, tentando se reerguer".
A atriz/escritora, porém, disse que encarou o livro como "um ato de desafio puro", uma narrativa da qual ela gostaria de ver mais exemplos, com uma protagonista com a qual se identifica, escrito em uma época em que se viu decepcionada com as oportunidades de atuação que andava recebendo.
"Não sou convencional; tento ser visceral, vulnerável e explícita. O livro foi um canal de criação de algo para mim mesma; pude revisitar a história e fazer o que quis com ela", explicou, durante o almoço que dividimos em Williamsburg, no Brooklyn.
A protagonista de "Bonfire" é Abby Williams, uma advogada ambiental de Chicago que volta à cidade natal, a fictícia e modesta Barrens, em Indiana, para investigar um caso contra a Optimal Plastics, um conglomerado que parece se imiscuir com todos os aspectos da comunidade.
Uma vez ali, Abby volta a lidar com tudo o que amava e (principalmente) odiava na vida local, ao mesmo tempo em que se vê atraída por um mistério não resolvido dos tempos de colégio, dez anos antes, quando o grupo de adolescentes que a atormentava foi atingido por uma doença inexplicável e uma de suas rivais da época desapareceu.
Ritter, 35 anos, que foi criada em Shickshinny, na Pensilvânia, afirma que sua ambição era dar vida a um cenário "interiorano tortuoso", no qual "a festa das sextas-feiras é em frente à fogueira" e "o mesmo juiz distrital que põe a garotada na correcional fuma maconha com os moleques nos fins de semana".
Algumas das passagens mais evocativas do livro têm a ver com o estranho retorno de Abby a Barrens, a cidadezinha que ela achava ter esquecido. Ali, Ritter escreve, a beleza "chega quando menos se espera" e a casa onde passou a infância, sem atrativo nenhum, "que parece avançar na minha direção, e não o contrário. Como se estivesse ansiosa para me ver lá dentro. Como se estivesse esperando".
Ritter não teve uma experiência tão brutal no colégio quanto Abby, "mas sei muito bem o que é ser uma pária, uma solitária".No início da adolescência, ela chegou a Shickshinny como filha única criada por uma mãe divorciada, características que a tornaram alvo explícito de comentários e boatos. "Na época, ali de onde eu sou, não tinha ninguém divorciado ainda, então o pessoal parava de falar quando eu chegava", conta.
Na época em que se formou no ensino médio, já trabalhava como modelo em Nova York, Tóquio e Milão, mas queria mesmo se tornar atriz, produtora e musicista.
Desde então, conquistou oportunidades em séries como "Breaking Bad" e a noir adolescente "Veronica Mars", além de projetos que desenvolveu com sua própria produtora, a Silent Machine.
Gren Wells, roteirista, diretor e amigo de Ritter a descreve como "'psicoticamente motivada', da melhor maneira possível".
"Nessa indústria, você tem que começar sozinho, fazer a própria carreira. Ela não é o tipo de atriz que fica sentada, esperando telefonema. Cria o próprio produto", explica ele.
Ritter revela que tem sido muito valiosa a experiência em "Jessica Jones", seriado baseado na heroína da Marvel sobre uma detetive particular sarcástica, mas ainda lidando com o trauma de um vilão que invadiu e lhe controla a vida.
"Depois que a série estreou, muitas mulheres passaram a me parar na rua para me dizer o quanto a série mudou suas vidas, como as ajudou a lidar com os antigos traumas sexuais."
"Após várias interações desse tipo, comecei a pensar de forma diferente. Passei a querer me aperfeiçoar mais e mais. Queria dar tudo de mim."
Ritter já tinha se comprometido a interpretar Jessica Jones em outra série da Netflix, "The Defenders" e, enquanto esperava para começar a filmar, ficou espantada com o tipo de ofertas para papéis no cinema que recebeu. "Strippers torradas de sol e esposas de homens da idade do meu pai", conta.
"Muito obrigada, mas não quero não. Não é bem o tipo de trabalho que quero deixar para este mundo."
Ritter passou então vários meses escrevendo "Bonfire" em sua casa, em Los Angeles, acrescentando detalhes ao esqueleto de uma ideia que teve, a princípio, para uma possível série de TV.
"Meu processo criativo tem muito a ver comigo andando para lá e para cá, de pijama de flanela, com uma jarra de café, anotando frases soltas, à mão. Se alguém checasse o pedômetro do meu telefone veria que estava andando uns quinze quilômetros, isso só dentro de casa."
"Às vezes, empacava em um branco criativo, mas não durava mais de 24 horas. Ela não tinha tempo a perder. Queria tentar acabar o livro antes de começar a gravar 'The Defenders', então impôs um prazo apertadíssimo a si mesma", revela Wells.
"Tinha dias que se permitia tricotar ou sair para uma caminhada, mas assim que voltava, lá ia ela de novo para a história."
Para Melissa Rosenberg, criadora e showrunner do seriado "Jessica Jones", há semelhanças entre a forma como Ritter aborda a atuação e como escreveu o livro.
"Krysten trabalha de dentro para fora. Ela se preocupa com os detalhes íntimos das personagens, como essas pessoas se movem, como falam. Isso se reflete no mundo em que habitam. Como atriz e agora como escritora, está levando sua experiência de vida ao público através das escolhas que faz e que, na maioria das vezes, são incrivelmente sutis."
Para ela, o que Ritter e Jessica Jones têm em comum é o senso de humor. "Jessica é mais sombria, em termos gerais. É mais na base de frases curtas e olhar sarcástico; Krysten é daquelas que gargalham com facilidade."
Jennifer Schuster, diretora executiva da Crown Archetype, afirma ter visto em "Bonfire" a mesma riqueza de talento, no caso, para a narrativa, que Ritter reflete na tela.
"Ela tem um olho muito bom para desenvolver personagens complicadas, do tipo em que você sempre se reconhece. Sempre revela um pouco dos nossos medos, nossa escuridão, nossos segredos."
Depois de concluir a produção da segunda temporada de "Jessica Jones" recentemente, Ritter agora comemora a sensação de liberdade que o livro lhe deu.
"É mais ou menos como me senti no início da carreira, quando fui deixando de trabalhar como modelo para aparecer nos primeiros comerciais de TV."
Relembrando aquele tempo, ela conclui: "Finalmente tenho o controle. E não tem nada a ver com aparência física, ter o nariz assim ou assado – o meu, aliás, é pontudo. O que vou fazer? Foi assim que Deus me fez."
Por Dave Itzkoff