Toronto – "Não parece aqueles lugares em que o pessoal vai para ser despedido?".
Jennifer Lawrence estava em uma sala de reunião sem graça de um hotel daqui, esperando o roteirista e diretor de seu novo filme, "Mãe!". Faltavam algumas horas para o lançamento no Festival de Cinema de Toronto e Darren Aronofsky, que também é seu novo namorado, estava quase atrasado.
"Cadê ele? Vou ligar", anunciou, e falou para o telefone: "Ligar para 'Dark Lord'."
Ela estava brincando (tomara) e, na sequência, engatou um comentário sem filtro, como de costume, sobre a experiência de fazer "Mãe!".
"Surtei antes de começar a gravar, sério mesmo. Achei que tinha sido escalada por engano." Encarnar a protagonista, ou seja, a "mãe" que não tem nem nome, a esposa tão simples que nem sai de casa, foi totalmente diferente das heroínas aventureiras e duronas pelas quais ficou conhecida. "Nunca me senti tão insegura", confessa.
O que mudou?
"Nada. Terminamos o filme e, de lá para cá, quase morri de nervoso e aflição", diz, brincando.
Dark Lord se materializou momentos depois. O apelido, na verdade, lhe cai muito bem, pelo menos cinematograficamente. Na tela, Aronofsky evoca todo tipo de mau comportamento e esquisitice repulsiva em "Réquiem para um Sonho" e "Cisne Negro". "Mãe!", uma parábola ambiciosa escondida em um filme de terror, supera ambos, fácil: o que começa como um suspense psicológico de invasão termina em um pesadelo incandescente surreal, recheado de temas que dividem e confundem os críticos.
Com um orçamento de US$30 milhões e uma sensibilidade artística geralmente reservada para o público independente, é uma aposta e tanto ser lançado como filme grande pela Paramount, principalmente logo depois de "It: A Coisa", superprodução de horror mais tradicional e decifrável da Warner Bros. Mesmo com o benefício de dois oscarizados em um gênero geralmente infalível e o frisson gerado pelo romance entre o diretor e sua estrela, "Mãe!" teve um desempenho aquém da estimativa de bilheteria, que já era baixa, depois do lançamento, em quinze de setembro. Porém, se não atrai o povão, certamente é um dos maiores motivos de discussões e debates deste ano, conquistando fãs famosos como Anthony Bourdain, o diretor Rian "Guerra nas Estrelas" Johnson e Chris Rock.
Na superfície, conta a história de um casal, Lawrence e Javier Bardem, que vive em uma casa vitoriana afastada e esquisita. Ele é poeta, teve um grande sucesso, mas vive perturbado por um bloqueio de escritor; ela está reformando, sempre arrumando, sempre limpando. A vida tranquila dos dois acaba com a chegada de vários "hóspedes", que simplesmente não vão embora. Todo o simbolismo – que lembra muito uma matriosca russa, com direito a iconografia religiosa, cultura de celebridade e subtons que mesclam Estado-indústria-exército – se vê a serviço de uma ideia maior, a alegoria que fez Aronofsky escrever o roteiro em cinco dias, em um arroubo estranhamente prolífico. "Não conseguia parar, parecia que tinha tido um sonho e tinha que pôr tudo para fora", conta.
Entretanto, a metáfora parece ter escapado a grande parte do público, com Aronofsky e Lawrence discordando sobre o quanto deveria ser revelado. "Ele quer que o público mergulhe às cegas, o que eu acho uma pena porque aí vai perder os detalhes e todo o brilhantismo por trás do filme. O meu conselho é entender o simbolismo."
Aronofsky defendia uma plateia totalmente inocente, o que, segundo ele, favoreceria as interpretações ou o espanto, mas olhando para a namorada na outra ponta da mesa de reuniões, disse: "Ela tem cacife para fazer o que bem entender. É um gênio de marketing e obviamente não precisa de conselhos de ninguém; sabe muito bem vender um filme."
Lawrence: "Você está sendo sarcástico?".
Não estava; assim sendo, vamos seguir o conselho dela. Atenção: há aqui alguns spoilers temáticos, mas pode ter certeza de que, mesmo que você os absorva, o filme certamente lhe causará surpresas. "Mãe!" conta a história de Mãe Terra (Lawrence) e Deus (Bardem), cujo sucesso poético tem o peso do Velho Testamento – daí todos os visitantes clamando por um pedaço dEle, como seu personagem é chamado. A casa representa nosso planeta. O filme fala da mudança climática e do papel da humanidade na destruição ambiental.
A ação acontece no sexto dia bíblico (a atriz revela que o título original era "Day Six") e segue essa linha cronológica. "Tem a criação do homem, a criação da própria religião, as pessoas lendo as mesmas escrituras e discutindo seu significado, falsos ídolos", diz Lawrence. Ela pegou as referências imediatamente. "Eu era a nerd da Bíblia, não perdia uma aula de estudos aos domingos", conta.
Aronofsky, ambientalista e membro ativo do Sierra Club, revelou-lhe o conceito, do qual ela gostou muito, embora tenha sido pega de surpresa pela visão integral do roteiro, que causa um estrago implacável e grotesco em sua personagem. "Depois de ler a primeira vez, nem queria deixar dentro de casa. Achei quase demoníaco."
E a atraiu por jamais ter encontrado nada remotamente semelhante. "Adoro essa coisa do Darren de ser ousado, explícito. Concordo cem por cento com a mensagem do filme. É uma violência, mas tem que ser assim."
Entretanto, o que não faltam são visões alternativas, incluindo a de Bardem. Ele reconhece o simbolismo ecológico, mas diz que a ideia que mais o marcou foi o que chama de "o nascimento de uma religião enquanto culto", que divide mais do que une. Para ele, encarnar Deus é um exagero. "Humanamente falando, não consegui me identificar, mas toda vez que voltava à metáfora, me descobria mais sábio."
Outra interpretação se baseia no relacionamento entre o artista mais velho, brilhante, mas narcisista, e sua companheira, bela, jovem e apaixonada, ainda que insatisfeita. Bardem tem 48 anos, mesma idade de Aronofsky; Lawrence tem 27. O diretor se irrita com a sugestão de que a dinâmica na tela espelhe a sua própria com a estrela na vida real. "Como poderia? Nosso relacionamento só começou depois do longa concluído. Nós apenas nos divertimos muito, nada mais que isso."
Lawrence ri. "Não dá para perceber pelo filme?".
Bardem conta que, no set, percebeu várias semelhanças entre os dois. "Em termos criativos, ambos se dispõem a ir até onde for necessário, mas sem se contaminarem", explica.
Eles começaram com três meses de ensaio em um galpão no Brooklyn, usando uma versão do cenário para aprimorar o trabalho de fotografia de Matthew Libatique. Lawrence geralmente é contra o procedimento. "Não gosto de atuar desnecessariamente. Acho constrangedor."
Já para Bardem, o tempo a mais de experimentação foi um dos motivos que o levou a encarar o projeto. "Assim que entrei para o grupo, soube que seria uma viagem com início definido, mas que não sabíamos como ia terminar", descreve, enigmático.
O esforço exigido de Lawrence foi imenso: em duas horas de filme, ela aparece em close durante 66 minutos. Até os sons da casa são sua voz, manipulada digitalmente.
E uma sequência horripilante, quase no fim do filme, pesou de verdade. "Nunca tive que fazer nada tão sombrio", revela, mesmo na franquia transgressora "Jogos Vorazes". Poucos dias antes de rodar a tal cena, começou a entrar em pânico e a perder o fôlego. Sabia que precisava de uma maneira de relaxar. Não teve dúvidas: montou uma "barraca Kardashian", um refúgio com balinhas, docinhos e fotos das estrelas do reality show, onde viu e reviu os episódios da série.
"Para mim, é a parte mais perturbadora do filme", confessa Aronofsky.
Apesar de toda a dedicação e cuidado, o diretor não se abalou com a possibilidade de o público não entender sua obra. "Não posso entregar tudo mastigado; não faço esse tipo de coisa. Meu trabalho, acima de tudo, é entreter e assustar o público."
Já Lawrence se importa, e muito; e para ela, a mensagem repercutiu com força.
"É um filme difícil. Eu assisti, mas só consegui pensar que meus irmãos não vão poder ver. Tem hora que você se pergunta: por que ir tão longe? Para mim, a resposta veio mais tarde, depois das imagens queimarem meus olhos. É aquele sentimento visceral que fica. Ele é o porquê."
Por Melena Ryzik