Município do Vale do Rio Pardo que acolheu Belchior em seus últimos quatro anos de vida, Santa Cruz do Sul sediou em junho mais um dos tantos tributos ao cantor e compositor cearense que vêm sendo realizados no país. Intitulada Tributo: Amigos e Canções, a celebração ao artista, nascido em 1946 em Sobral, a "Princesa do Norte", foi organizada pelo grupo de pessoas (que inclui profissionais da imprensa, professores e empresários) que hospedaram o artista em suas residências em seu autoexílio no Sul, a partir de 2013.
Talvez a maioria dos presentes no Bar e Botequim Rota Floriano nunca tenha tido a chance de assistir a um show de Belchior. Na ocasião, todos tiveram a oportunidade não apenas de ouvir Belchior, interpretado por músicos locais, como também de escutar histórias dos anos em que o artista viveu no município de pouco mais de 100 mil habitantes, com o conhecimento de um número muito restrito de pessoas.
Em todas as homenagens, o autor de Apenas um Rapaz Latino-americano vem sendo celebrado enquanto artista, ou seja, como o sujeito que definiu um percurso próprio na música brasileira: o compositor de letras extensas, o cantor de voz nasalada, o calígrafo de autógrafos inesquecíveis e o artista plástico que ilustrava os próprios álbuns. A singularidade do tributo de Santa Cruz do Sul se deu na medida em que dois sujeitos se fizeram presentes: o artista e, de modo sui generis, a pessoa. O que significa dizer que, ali, puderam ser "vistos" tanto Belchior quanto Antonio Carlos.
A presença de Antonio Carlos na cidade, marcada profundamente nas vidas daquelas pessoas, foi lembrada por depoimentos ao público. Foram as conversas íntimas que teve com seus anfitriões, Dogival, Bruna, Dionel, Ubiratan, Ingrid, Marina, Caco, Marisa, Célia, Malu, Iboré e Valéria, que indicaram os discos que ele ouvia, os livros que ele lia, os filmes a que ele assistia, as comidas de que ele gostava, as piadas que ele contava, os passeios que ele tinha feito na região e até o pijama que, ao partir, ele esqueceu em cima da cama. Foi com Antonio Carlos que os anfitriões de Santa Cruz conviveram, muito mais do que com Belchior. Não por acaso, no tempo em que viveu no Rio Grande do Sul, era justamente de Antonio que Belchior pedia para ser chamado.
O tributo operou o contrário daquilo que Antonio fez com Belchior a partir de 2007, quando decidiu viver exclusivamente a vida da pessoa e dar um descanso ao artista: a celebração uniu Antonio (in absentia) e Belchior
Josely Teixeira Carlos
Professora de linguística e pesquisadora
Apesar de Antonio muitas vezes ter rememorado com os amigos da cidade os fatos da vida e da arte de Belchior, como a convivência que teve com Elis Regina, Chico Buarque e Raul Seixas, Antonio teimava e se escusava em deixar Belchior se mostrar. Afinal de contas, Belchior nunca se recusaria a cantar e a tocar para quem quer que fosse. Mas Antonio podia fazê-lo – e o fez, jamais tendo cantado e tocado para a rede de pessoas que o recepcionou. Não foi Belchior quem se afastou dos palcos e de seu público.
Só Antonio teria a liberdade de tomar essa decisão.
E por isso, no tributo, pela força e representatividade de sua obra, foi principalmente Belchior quem veio à tona, através de suas canções interpretadas em viva voz por cantores no microfone, acompanhadas e sentidas pelos amigos e fãs nas mesas, sentados, de pé, nas nuvens. Naquele momento em que todos cantaram Como Nossos Pais, Medo de Avião, Velha Roupa Colorida e outros hits de Belchior, o Antonio, que tinha compartilhado jantares e vinhos com seus cicerones, além de conversas sobre artes, política e tantos assuntos, deu lugar ao seu outro – a Belchior.
O próprio artista já demonstrava essa consciência de separação entre os papéis da pessoa e do artista na canção polifônica Rock-romance de um Robô Goliardo (de 1984, com música de Jorge Mello): “Mas não confiem em mim: Eu não existo! Sou apenas o personagem que diz isto”.
O tributo de Santa Cruz operou, então, o contrário daquilo que Antonio fez com Belchior a partir de 2007, quando decidiu viver exclusivamente a vida da pessoa e dar um descanso à trajetória do artista: a celebração uniu Antonio (in absentia) e Belchior. Seria somente na interação entre essas duas dimensões que teríamos de volta Belchior em completude. Até 30 de abril passado era o que todos esperavam, afinal, o sempre rapaz latino-americano ainda estava “muito jovem pra morrer, mesmo se velho pro rock’n’roll!”, como cantou em Os Profissionais (1988).