Parece meio cínico fazer uma saudação pública a quem acaba de morrer, pois é inevitável que se questione: por que não escreveu todos esses elogios quando a pessoa estava viva? Eu já devo ter mencionado Belchior algumas vezes, mas rapidamente, sem ênfase, já que é impraticável ficar rasgando seda, por nada, aos inúmeros talentos a quem admiramos e que seguem aí, operantes. Como não é mais o caso, a coluna póstuma cumpre este dever.
Depois de Belchior ter feito parte da trilha sonora da minha adolescência, passei muitos anos sem escutá-lo. Porém, resgatei o álbum Alucinação alguns meses atrás, quando passei a ouvi-lo quase que diariamente, e essa providencial proximidade com sua obra torna clara pra mim a razão de sua partida comover tanto. Há quem se sensibilize com o fato de ele ter desistido da carreira e começado a viver de forma muito discreta – segundo dizem, até morando de favor.
As pessoas costumam ter um fraco pelos outsiders. De minha parte, a tristeza que senti quando soube da sua morte foi provocada por uma nostalgia profunda: lembrei do aparelho três em um da casa dos meus pais, dos meus vinis, dos meus 15 anos, da filosofia, poesia e idealismo que me formatou e me trouxe até aqui. A MPB, pra mim, foi uma fonte de inspiração mais efetiva que a literatura, sem desmerecer Monteiro Lobato. Ao escutar Belchior cantar "a minha alucinação é suportar o dia a dia/e o meu delírio é a experiência com coisas reais", eu estava recebendo de presente dois versos e um norte.
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Essa sua postura de não fugir da crueza da vida fez inclusive com que ele desse uma situada em Caetano, fazendo alusão à letra psicodélica de Alegria, Alegria. "Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua". Assim sentenciou o cearense em Fotografia 3 x 4, uma das mais belas músicas de seu repertório, ao lado de A palo seco, as duas de que mais gosto.
Belchior não era mesmo solar, e sim melancólico, e a melancolia é uma tristeza leve e romântica que amolece até o mais empedrado dos corações. Politizado, culto e consciente do seu tempo, era um artista que trazia a marca do independente, do cavaleiro solitário, do itinerante, do homem rude e sonhador que mata no peito os reveses do seu destino sem deixar que isso o desvie da sua procura maior.
"Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia/ amar e mudar as coisas me interessa mais".
Amar e mudar as coisas. Tão bonito e tão quixotesco. Assim era Belchior, o homem que morreu dormindo e, certamente, ainda sonhando.