Um dos mais respeitados autores portugueses da atualidade, Gonçalo M. Tavares deu palestra em Porto Alegre na noite desta segunda-feira, durante o lançamento oficial da programação do 9º Festival de Inverno de Porto Alegre – que volta a acontecer na Capital após um hiato de três anos.
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Com entrada franca e a convite da Coordenação do Livro e Literatura da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, a palestra de Gonçalo trataria principalmente de questões relacionadas à linguagem, à política e à religião – a conferência teria como base suas obras Aprender a Rezar na Era da Técnica, de 2007, e Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai, de 2014. Antes e subir ao palco, o escritor conversou com ZH.
Como o senhor encara o intercâmbio entre culturas lusófonas representado por sua vinda para a abertura oficial de um evento cultural que acontece em Porto Alegre?
Uma das coisas boas que nós temos é realmente essa língua comum, a língua portuguesa. Nesse sentido, apesar de muitas palavras terem seguido trajetos diferentes, há uma ligação muito importante. O que me parece é que isso, de nós lermos autores brasileiros, os autores brasileiros lerem autores angolanos, os autores angolanos lerem autores portugueses, isso pode fazer com que as línguas ou as diferentes variantes da línguas misturem-se mais, e apareça um novo português, uma mistura dessas línguas todas. Talvez o importante agora fosse valorizar a possibilidade de nós lermos outras variantes do português. Infelizmente, acho que os livros não circulam tanto quanto deveriam circular. Poucos livros que saem em Portugal chegam aqui no Brasil. São muito poucos os que chegam a Angola, poucos brasileiros chegam a Portugal, e penso que todos teríamos a ganhar se tivéssemos uma política da língua mais afirmativa. A língua espanhola consegue fazer isso melhor do que nós. Muitas vezes, eles têm editoras comuns para México, Argentina e Espanha, algo que a língua portuguesa não tem.
A influência da língua portuguesa do Brasil em Portugal se dá muito mais pela TV, não?
Há uma influência das telenovelas, de algumas frases feitas que entram no vocabulário português. A televisão tem seu espaço, mas acho que é mais interessante quando a língua chega de uma forma mais trabalhada, como quando chega através de um livro. Por isso, quando um livro de Chico Buarque, por exemplo, chega a Portugal, acho que faz mais por esta mistura das línguas do que as telenovelas. A literatura tem a função de reconstruir as frases, de recolocar a língua em um patamar da ambiguidade, da ironia, do sarcasmo, coisas que só a grande literatura é capaz.
De que forma essa importância da linguagem e de seu entendimento total impacta as democracias?
A linguagem é muitas vezes utilizada na democracia para manipulações, para demagogia, e julgo que qualquer habitante do século 21 deve ter aulas de linguagem como se tem aulas de artes marciais, para defesa pessoal. Entender a estrutura da linguagem, o funcionamento da linguagem, é tão importante... Aliás, é mais importante em uma democracia do século 21 do que saber se defender em termos de defesa pessoal. Saber de linguagem é um sistema de defesa pessoal. E acho que, infelizmente, a maior parte dos cidadãos das democracias não entendem nada de linguagem, são facilmente manipulados, não entendem quem é o sujeito, qual é o objetivo do sujeito, que imagens possíveis há, que truques há. Por exemplo, algo que é muito evidente no discurso político é o discurso da informação nula: quando alguém diz uma coisa que, se colocada na negativa, é absurda. Isso significa que ela não está dizendo nada. Se eu disser "eu quero que o meu país se desenvolva muito", estou falando uma frase de informação nula, porque o negativo disso seria "eu não quero que o meu país se desenvolva muito". Ninguém diz isso. Uma frase, para dizer algo, tem que ter alternativas.
Isso reforça a importância da educação em democracias?
Sim, a educação da língua e uma educação que passe pela literatura. Em Portugal, o ensino da língua foi separado do ensino da literatura por muito tempo. A língua tem um caráter muito ambíguo, e ainda bem. Se eliminarmos a literatura do ensino da língua, eliminamos uma série de características essenciais da língua.