Já imaginou ir ao teatro e assistir a um espetáculo, cujo ator principal é o eletricista que prestou serviços na sua casa? Ou descobrir que o motorista que levou você ao trabalho protagoniza uma peça?
A rotina multitarefa é a sinopse da vida de atores independentes que se viram nos 30 para pagar as contas e não abandonar a carreira. A reportagem acompanhou quatro destes artistas entre ensaios, bicos e aulas. Nos bastidores, transpiração e criatividade. Nos palcos, os aplausos. Tem que querer muito!
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Sexta-feira, 19h, Bairro Sul América, Charqueadas. Na frente de uma das casas da Rua Candelária, um bar começa a encher após mais um dia de labuta que chega ao fim. Na lateral desta residência, que dá para um beco de acesso a outras ruas, uma porta leva até a sala de onde saem barulhos variados de conversa, canto e textos que podem parecer desconexos para quem passa por ali. Uma voz, mais imponente do que as outras, dá instruções.
No local batizado de Sala Cultural Coletivo 7 de Teatro, trabalham Douglas Castro, 29 anos, o dono da voz que se destaca, e 12 alunos do grupo de mesmo nome. Uma sexta sim, outra não, e aos sábados, cerca de 20 jovens, entre 12 e 26 anos, se reúnem para dar vida a diferentes espetáculos.
Necessidade
Até junho do ano passado, o espaço abrigava uma sala e um quarto da casa onde moram Douglas, seus avós Silvio e Tereza, donos do bar da frente, e o companheiro, Mateus Rodrigues. A decisão de derrubar paredes e diminuir o espaço da casa veio da necessidade de o ator e professor de teatro seguir dando aulas.
O Coletivo 7 começou em 2012, como um projeto de extensão com alunos do Instituto Federal Sul-riograndense (instituição pública que oferece cursos técnicos e superiores) da cidade. Em dois anos, o grupo extrapolou os limites da escola, e o coletivo passou para o Sesi de Charqueadas, onde Douglas foi convidado a dar aulas de teatro.
Em 20 de dezembro de 2015, porém, o Sesi fechou suas portas, e as aulas tiveram de parar. Era chegada a hora de a ideia de uma sede própria, que já estava na cabeça do professor e ator há algum tempo, enfim, sair do papel.
– Eu relutei um pouco. Será que vai dar certo? Será que vai dar retorno? Mas eu abria as minhas redes sociais todos os dias e via mensagens dos alunos pedindo para o grupo voltar. Até as mães deles me perguntavam. E a necessidade (de sustento) também era minha – conta Douglas.
Conjunto da obra
A sala ficou pronta em junho de 2016. Cada aluno paga R$ 30 mensais pelo trabalho de Douglas e pelo uso do local. O que ganham com espetáculos é usado para cobrir outros gastos como figurino e transporte.
Mais do que uma escola, o local é a sede do grupo.
– Eles podem vir aqui a hora que quiserem. Cuidam dos figurinos, sabem quando vão ter apresentações. Ninguém depende do professor. Se eu não estivesse aqui hoje, teria ensaio – garante o mestre.
Esta liberdade permite que Douglas também faça outros trabalhos como ator e até como diretor. Desde março, ele cursa Teatro na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul:
– Isto aqui pode me sustentar neste mês, mas tenho que pensar daqui a dois meses. Assim é com todo ator. Meu sustento vem deste conjunto de atividades que eu faço.
Sobreviventes
Ator com 40 anos de carreira e um dos sócios da Casa de Teatro de Porto Alegre, Zé Adão Barbosa concorda com Douglas ao dizer que, para sobreviver no Rio Grande do Sul e, principalmente, em Porto Alegre, atores e atrizes são obrigados a “correr atrás da máquina”, procurando alternativas para trabalhar e manter as contas em dia. Normalmente, os aspirantes a atores buscam atividades paralelas em áreas afins, como produção cultural.
– Eu já fiquei dois anos sem trabalho como ator. Se eu não tivesse a Casa de Teatro, não teria a estabilidade que conquistei. Existe muito ator que entra em crise, com aluguel vencido, sem saber o que fazer – observa o professor, responsável por lançar nomes como Sheron Menezzes, no ar como a Diara de Novo Mundo, e Rafael Cardoso, que fez o vilão Cesar em Sol Nascente (2016).
O sonho de muitos que chegam à sua escola é decolar para o Rio de Janeiro e São Paulo, rumo ao estrelato na tevê. Outros, porém, optam por ficar no Estado por diferentes motivos.
– O ator que fica aqui é um sobrevivente. Já sabe que vai ter de trabalhar mais, dar aulas, fazer comerciais, 300 coisas – destaca Zé.
Paixão que move
Professora do Departamento de Artes Dramáticas do Instituto de Artes da UFRGS e atriz com 25 anos de carreira, Celina Alcântara se junta ao coro.
– Me perguntam muito: “Dá dinheiro fazer teatro? A gente consegue sobreviver?”. Sim e não, mas não é só no teatro. Hoje em dia, está difícil também para outras profissões. Algumas pessoas vão se dar melhor. É preciso criar as próprias possibilidades – diz.
Os profissionais do teatro e da arte, em geral, precisam repensar o trabalho e encontrar maneiras para que seja sustentável no sentido econômico, principalmente em época de crise. Porém, conforme a professora, não há fórmula. E a batalha pode ser longa.
– Costumo dizer que, pra fazer teatro, tem que querer muito. A única coisa que justifica esta busca é ser importante pra ti. As pessoas que fazem teatro fazem porque isto é vital para elas – finaliza.
Luz, garra, ação!
No apartamento, no Centro de Porto Alegre, onde Douglas Dias, 34 anos, mora com a esposa, a atriz e produtora cultural Débora Maier, duas mesas dividem a sala. De um lado, fica a bancada de trabalho da companheira, com cadernos, caixas com material de artesanato e uma máquina de costura. Do outro, na parte de Douglas, chaves de fenda, alicates, baterias, transformadores, multímetro e uma fita isolante roubam a cena.
Ator desde 2012, ele usa a atividade na qual começou a sua vida profissional, como eletricista, para ajudar a pagar as contas.
– Nosso sustento vem do trabalho com a arte, fazendo teatro, publicidade para tevê, cinema e tal. Mas uso meus conhecimentos em elétrica como complemento de renda – revela o artista.
Transição gradual
Natural de Gravataí, o ator fez curso de elétrica no Senai aos 14 anos. Trabalhou como eletricista de manutenção industrial e técnico em eletrônica em uma metalúrgica. Ele não sabe dizer quando ou como, mas, neste meio tempo, surgiu a vontade de atuar:
– Sempre gostei de coisas artísticas como cinema. Aí, comecei a alimentar esta vontade de ser ator e procurei um curso em tevê e cinema, em 2009.
Por um ano e meio, conciliou o emprego com as aulas. Até que, em 2011, passou a fazer curso de Teatro na Usina das Artes, em Porto Alegre.
– Logo que comecei a fazer teatro, larguei o meu emprego. Pedi demissão, peguei toda a grana da rescisão e fui investindo em cursos. Quando este dinheiro foi chegando ao fim, comecei a procurar trabalho na área – lembra Douglas.
Teatro de guerrilha
Os primeiros trabalhos no teatro vieram em função dos conhecimentos de Douglas na área da elétrica:
– Me botaram para fazer contrarregragem (cuidar dos objetos de cena) em um musical. Aí, já pintou trabalho de ator em uma peça infantil, as coisas engrenaram, e me tornei profissional.
Mas, quando estes convites para os palcos escasseiam, e as contas não deixam de chegar, Douglas assume o seu lado eletricista.
– E, às vezes, eu precisaria da grana de um trabalho de elétrica, mas não consigo fazer devido aos ensaios. A gente brinca que faz teatro de guerrilha! É uma luta diária se organizar pra trabalhar. Se pego uma peça que vai me exigir cinco meses de ensaio, não tem como fazer mais nada – diz.
Estabilidade viável
Aos dez anos, Kalé Viana, hoje com 33, assistiu a uma peça, pela primeira vez, na escola municipal onde estudava, em Novo Hamburgo. Em sua inocência de guri, acreditava que os personagens saíam de um túnel em direção ao palco.
Uma atmosfera de sonho que nunca deixou sua imaginação.
– O espetáculo era Escravos de Jó. Aquilo me despertou um desejo grande de conhecer mais a arte do teatro – recorda ele.
A oportunidade veio quando tinha 18 anos. Um conhecido deu-lhe a dica: Luz & Cena, uma companhia de teatro da cidade – justamente a responsável pela peça a que ele havia assistido na infância –, procurava atores para o espetáculo Negrinho do Pastoreio.
– Eu não tinha o biótipo necessário, mas fui pro teste. Gostaram do que apresentei e entrei no elenco. Depois, vieram outra e mais outra peça – conta Kalé, ator do grupo até hoje.
Luz & Cena, fundado pelo ator, diretor e cenógrafo Marco Pereira, em 1978, em Novo Hamburgo, explora dois nichos de mercado: escolas, empresas e universidades, com peças de acordo com temas específicos pedidos por clientes, e suas produções próprias.
Como uma empresa, emprega 20 pessoas, entre atores, costureiras, representantes comerciais que vendem espetáculos e outros profissionais necessários para tocar o negócio. O galpão é próprio, com mais de 300m², onde ensaiam, produzem e armazenam cenários e figurinos. Lá, também funciona o escritório comercial e ficam estacionadas as três vans próprias que levam a equipe em temporadas pelo Rio Grande afora.
Salário fixo
Os atores recebem de duas formas: por contrato de trabalho de 12 meses, que pode ser renovado ou não, ou por temporada, com pagamento fixo. O método pode ser considerado controverso – afinal, se ganhassem por bilheteria, talvez, faturassem mais. Mas dá segurança, pois os salários caem na conta em cartaz ou não, lotando teatros ou não.
– A gente trabalha com espetáculos que têm uma demanda fixa, como o de Natal e o que conta a história do Rio Grande do Sul, por exemplo. Trocar muito de elenco não é interessante, pois demanda novos ensaios – diz o produtor executivo e sócio Gerson Ribas.
Apesar de não revelar o seu salário, Kalé assegura que vive bem com o que ganha:
– Estou aqui há 13 anos. Me casei neste tempo (com a professora Sirlei Viana), tive duas filhas (Manuella, nove anos, e Mariah, dois). Comprei minha casa, meu carro. Tudo o que eu tenho se deve à arte.
Fundador e incentivador
Fundador do Luz & Cena, Marco Pereira deixou a vida de ator ainda em 1979, pouco depois da fundação da companhia, para dedicar-se à produção. Na década de 1980, o grupo funcionou no Rio de Janeiro, mas voltou ao Estado no final dos anos 1990, ao identificar um potencial de mercado no Interior.
– Tinha pouco teatro aqui. Viajamos com uma produção, com outra... E a coisa foi dando certo – diz, feliz por gerar empregos:– Tem gente que está aqui há quase 20 anos, trabalhando muito!
Luz & Cena recebe currículos o ano todo. E acolhe jovens que queiram acompanhar seu trabalho. E-mail: teatroluzecena@gmail.com. Site: www.luzecena.art.br.
Vai um Uber aí?
Após trabalhar numa fábrica de sorvetes e de estudar Arquitetura por um ano, Juliano Passini, 26 anos, de Campo Bom, se rendeu ao teatro aos 18 anos:
– Foi depois de uma crise pessoal. Enquanto ajudava na padaria dos meus pais, passei a frequentar oficinas em Novo Hamburgo.
Seis meses depois, ele já estava atuando em espetáculos da companhia Produção Urbana, de Estância Velha. Em 2011, foi contratado pelo Luz & Cena, onde ficou até 2014. De lá, rumou para a Companhia Teatro Novo, da Capital.
– Fui chamado para fazer um dos mendigos de Corcunda de Notre Dame. Fiz uma peça por semestre – calcula.
Mas, no final de 2016, Juliano se viu sem trabalho.
– Como eu tinha um carro à disposição, pensei: "Por que não dirigir Uber?" – lembra.
Quando a arte imita a vida
A decisão veio de uma necessidade: arranjar grana extra e pagar as contas. Mas até a nova aventura ao volante tem somado à carreira de ator.
– Eu conheço muita gente diferente no carro, ouço muitas histórias legais. Ao mesmo tempo, acabo falando que também sou ator e convidando as pessoas para conhecer o meu trabalho. Além de conseguir pagar a gasolina para ir a Porto Alegre todos os dias, para os ensaios (risos) – pondera Juliano, que conta com o apoio do companheiro, o dentista Rodrigo Nunes.
Em meio à rotina, ele arranja tempo para escrever e produzir o seu primeiro monólogo, Atordoado, que estreia no dia 5 de maio, na Casa de Teatro de Porto Alegre:
– É uma comédia na qual interpreto Guilherme Duarte, um ator. Tem um pouco de mim e histórias que ouvi. Ele está prestes a estrear o seu primeiro espetáculo como protagonista e precisa lidar com questionamentos, idade, insegurança...