Ninguém, hoje, faz filmes como os portugueses. Talvez a mais estimulante cinematografia do mundo, Portugal registra não mais do que 15 longas-metragens lançados por ano, parte composta por comédias populares que seguem os padrões da TV e circulam apenas no próprio país – tal qual as chamadas globochanchadas brasileiras. Mas o que resta desse total são os filmes de cineastas aclamados internacionalmente, como Miguel Gomes (Tabu, As Mil e Uma Noites), Pedro Costa (Cavalo Dinheiro, Juventude em Marcha) e João Pedro Rodrigues (Odete, A Última Vez que Vi Macau).
Este último tem história com Porto Alegre. Já esteve na capital gaúcha para lançar Morrer como um Homem (2009) e, antes disso, seu O Fantasma (2000) provocou acalorados debates na cidade – que ganharam as páginas do finado caderno Cultura, de ZH. O Fantasma foi um dos marcos iniciais dessa onda de grandes filmes portugueses do século 21. Fez uma síntese, 17 anos atrás, de suas características fundamentais: incompreendido por parte do público, narra a jornada de transformação de um homem em um contexto carregado de significados sociais, históricos e políticos.
O mais novo filme de Rodrigues, O Ornitólogo, com estreia prevista para esta quinta-feira dentro do projeto Sessão Vitrine Petrobras, tem tudo isso – e mais: uma carga religiosa e uma força desmistificadora de um personagem de apelo universal que é especialmente importante em Portugal: Santo Antônio de Pádua.
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Nascido em Lisboa, Santo Antônio chamava-se originalmente Fernando – como o ornitólogo do título, sujeito que acaba perdido após sofrer um acidente ao observar pássaros ao norte de Portugal. Paul Hamy interpreta essa figura solitária, que em sua jornada (de transformação, afinal, estamos falando de João Pedro Rodrigues) cruzará com garotas chinesas que se perderam ao percorrer o caminho de Santiago de Compostela, um jovem pastor surdo-mudo e gay, amazonas nuas que parecem saídas de um sonho, assim como os integrantes de uma tribo aparentemente hostil decidida a praticar rituais de violência na mata.
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Conforme passa o tempo, o espectador percebe que há algo com Fernando. Mas é apenas nas sequências finais que se dará conta de quem ele de fato é – ou seria transformado. Até chegar lá, ao menos, há muito o que fruir. Vai ser difícil, por exemplo, você ver a natureza filmada de maneira tão singular – usando drones e câmeras em miniatura, conforme descreve em entrevista concedida a ZH, Rodrigues emula o ponto de vista dos pássaros, usando cortes bruscos e angulações que tornam algumas sequências impactantes pelo que sugerem sobre a interação entre o homem e os animais.
Entretanto, é no que tem a dizer sobre a vida profana do personagem que virará santo que O Ornitólogo realmente cresce: o desejo e o sexo, a morte e a culpa (ou a ausência dela), os rituais de (des)purificação – toda a aventura da vida de Fernando se apresenta, na verdade, como uma provação da qual parece impossível sair ileso. O homem comum se purificará – mas de um jeito totalmente diferente, diria oposto, àquele pregado pela tradição cristã.
O que há de político nessa grande provocação? – você pode se perguntar. Em Portugal, explica o próprio Rodrigues, esse santo que nasceu no país e foi morrer na Itália entre os séculos 12 e 13 é tido como símbolo na defesa de uma certa moral conservadora.
– A ditadura fez da religião um de seus pilares, construindo uma imagem de Santo Antônio que não corresponde à realidade – diz o cineasta, que tem 50 anos de idade.
Não é simplesmente o mais chocante: O Ornitólogo é um dos mais ricos e potentes filmes de toda a carreira de Rodrigues.
O Ornitólogo
De João Pedro Rodrigues
Drama, Portugal/Itália/França/Brasil, 2016, 117min.
Estreia nos cinemas prevista para quinta-feira, na Sessão Vitrine Petrobras.
Cotação: ótimo.