Na autobiografia Vida minha, Domingos Oliveira lamenta: "A natureza não tinha o direito de dar aos homens a capacidade de lembrar com nitidez o passado. (...) A natureza é uma sacana". Pois o veterano ator, diretor, dramaturgo e escritor resolveu driblar essa sacanagem recontando na tela as memórias de um dos períodos mais exuberantes de sua existência com o filtro da memória afetiva encharcada de uísque. O resultado é BR 716, talvez o mais vigoroso filme do octogenário realizador desde o clássico Todas as mulheres do mundo (1966).
Frequentador assíduo do Festival de Gramado, de onde sempre volta para casa com pelo menos um prêmio na mala, o carioca Domingos finalmente levou com BR 716 o Kikito que faltava em sua coleção: o de melhor filme. O longa que estreia nesta quinta-feira nos cinemas ganhou ainda na última edição do evento serrano as estatuetas de melhor direção, atriz coadjuvante (Glauce Guima) e trilha sonora (para o próprio Domingos).
O título, que parece nome de estrada, na verdade é um endereço: Barata Ribeiro, 716 é o local em Copacabana onde o artista morou na juventude no Rio e o cenário quase único do filme. Na intensa boemia carioca no ano de 1963, o engenheiro e aspirante a escritor Felipe (Caio Blat) leva uma vida regada a álcool, sexo, bolero e festas intermináveis realizadas no apartamento dado por seu pai (Daniel Dantas). Entrincheirados nesse bunker na Zona Sul, o protagonista, seus amigos e seus amores celebram a vida, sonham com o futuro e curam a ressaca. Enquanto o golpe militar ainda não bate à porta, Felipe entrega-se às delícias e às dores da paixão, encarnadas em três mulheres que ama, às vezes simultaneamente – e que são interpretadas pelas atrizes Maria Ribeiro, Sophie Charlotte e Aleta Valente.
Um dos aspectos mais empolgantes de BR 716 é a maneira livre como Domingos Oliveira filma o apartamento-QG – o próprio imóvel é uma espécie de personagem. A câmera circula pelas dependências da casa como se fosse mais um flâneur daquela balada sem fim, registrando a fluidez dos deslocamentos físicos e afetivos da jovem patota em imagens em preto e branco – captadas tanto por equipamentos de alta definição quanto pelas diminutas e portáteis filmadoras GoPro. Outro destaque é o carisma do numeroso elenco – que inclui ainda nomes como Pedro Cardoso, Glauce Guima, Lívia de Bueno e Matheus Souza –, interagindo com sintonia e naturalidade em cena.
Sophie Charlotte está arrebatadora e glamourosa no papel de uma cantora iniciante que deixa Felipe embasbacado, enquanto o sempre competente Caio Blat – que merecia ter levado o troféu de melhor ator em Gramado – conquista o público como o jovem alter ego de Domingos Oliveira, emulando com graça as expressões e os trejeitos característicos do cineasta.
"Nunca pertenci a nenhum grupo. Só aos bêbados, aos loucos", diz Felipe em BR 716. Ao assinar um filme de turma cheio de energia aos 80 anos de idade, o independente Domingos Oliveira repactua o compromisso também com outro partido: o da juventude.
BR 716
De Domingos Oliveira
Comédia dramática, Brasil, 2016, 85min.
Estreia nesta quinta no circuito de cinemas.
Cotação: 4 estrelas (de 5).