Muita gente não faz ideia dos tormentos enfrentados pelos tradutores de literatura. Muita gente faz ainda menos ideia dos tormentos enfrentados por um tradutor de William Shakespeare, para alguns estudiosos dono do maior repertório escrito já deixado, uma constelação de 25 mil palavras diferentes em pelo menos 38 peças (uma contagem aponta 40) e 154 sonetos, além de extensos poemas líricos.
Professor recém-aposentado da UFSC e há 26 anos morador de Florianópolis, José Roberto O'Shea começou por Antônio e Cleópatra, que o fez sofrer com a métrica, e tem em andamento Tímon de Atenas, sua oitava tradução de Shakespeare. Ele também verteu ao português o estudo paradigmático de 900 páginas de Harold Bloom, Shakespeare – A Invenção do Humano.
"Alternância no uso de pronomes; impasses textuais; referências culturais obscuras; arcaísmos e neologismos; uso contrastivo de vocabulários de origem saxônica e românica; metáforas; oxímoros; anáforas; trocadilhos; ambiguidades propositais; malapropismos; inversões sintáticas e semânticas; (...) sem falar, evidentemente, na métrica, na eufonia do verso (e da prosa), no uso e no abuso do padrão iâmbico", diz uma lista de O'Shea, exibida em palestra na UFSC, sobre as dificuldades de se traduzir o dramaturgo inglês.
Muitos dos personagens shakespearianos, enfatiza, têm "verdadeiros idioletos" – sistemas linguísticos individuais que refletem vivências e características próprias, uma particularização vocabular como a da vida real. Toda essa riqueza de linguagem, nota o tradutor, tende a ganhar menos atenção que o intenso conteúdo das peças.
O'Shea fez quatro pós-doutorados (três na Inglaterra, um nos EUA), coordena estudos de Shakespeare há 23 anos e é uma maiores referências nacionais em conhecimento e tradução da sua obra. Mas diz evitar a bardolatria (o culto irrefletido de Shakespeare) e já traduziu mais de 40 livros de outros autores, como Conrad, James Joyce, W.H. Auden, D.H.Lawrence, Flannery O'Connor, Richard Yates e Kathleen McCracken.
Neste 2016 de celebração dos 400 anos da morte de Shakespeare (assim como do espanhol Miguel de Cervantes, morto 22 de abril de 1616, um dia antes do inglês), O'Shea tem sua tradução de Tróilo e Créssida sob análise e de Os Dois Primos Nobres no prelo, reforçando seu tato de traduzir obras menos manjadas do bardo. Em um café na UFSC, O’Shea falou da riqueza vocabular de Shakespeare. Leia a seguir.
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Plasticidade
Shakespeare pega a língua inglesa num momento de transição. Entre o inglês medieval e os primórdios do inglês moderno. Já é o inglês moderno. No momento em que ele chega nesse vernáculo a língua está querendo começar a se estabelecer como língua de potencial artístico, começando a ser usada na poesia lírica, na poesia dramática, em um ou outro ensaio científico - no lugar do latim, claro. Só que essa língua ainda tá nascendo, então você ainda não tem gramática, ainda não tem dicionários, você tem listas de palavras. Mas você não tem uma normatização, uma prescrição gramatical. Então quando Shakespeare chega, ele e seus contemporâneos, no final do século 16, eles encontram o que os estudiosos chamam de plasticidade. A língua inglesa tinha uma total plasticidade, não havia normas rígidas de uso, de emprego. Então ele, um poeta extremamente criativo, inspirado, ele explode, ele usa 25 mil palavras diferentes. Pega substantivos, transforma em verbos, advérbios, transforma em adjetivos... O léxico do John Milton, que seria o segundo (a mais usar palavras diferentes), tem 15 mil palavras. Ele pega aportes do anglo-saxônico, do inglês influenciado pelo latim, do francês normando, e flexibiliza o uso da língua. Não só ele, os contemporâneos dele também, mas ele, em variação lexical, ganha de todo mundo.
Centenas de expressões
A gente não sabe bem essa questão da criação (de palavras por Shakespeare). Muitas palavras teriam mesmo sido criadas por eles, muitos neologismos. Mas muitas vezes o que você tem nele é a primeira abonação registrada de uma palavra que provavelmente circulava nas ruas de Londres. Porque se o teatro emula padrões de fala, é provável que ele tenha trazido para o palco palavras e expressões que já ouvisse nas ruas de Londres. Os primeiros registros são dele. Agora, se criou ou não aquilo é impossível de recuperar. O importante é que ele tem registros muito precoces de palavras e usos que só seriam encontradas depois. Centenas de palavras, centenas de expressões que hoje em dia são corriqueiras em língua inglesa.
Significado oposto
A gente tem hoje uma dúzia de dicionários especializados na obra shakespeariana, trabalhos excelentes. Desde a primeira metade do século 20 já havia. Há dicionários gerais sobre a sua obra e dicionários específicos sobre a linguagem erótica, linguagem da cena, linguagem do direito. Pro tradutor isso é uma maravilha, fora o OED (Oxford English Dictionary), no qual você vê o que a palavra significava na época. (Então) o problema não é a palavra desconhecida (usada nas peças). A palavra desconhecida o tradutor nunca viu, vai pesquisar. O problema é a palavra conhecida, aquela que sofreu inversão semântica nos últimos 400 anos e hoje significa o oposto do que ela significava pra Shakespeare. Tem dezenas de palavras assim.
A mais difícil
A tradução mais difícil foi a primeira, Antônio e Cleópatra, que eu padeci inicialmente com a métrica, até que a Leonor Scliar (Cabral) me ajudou, me destravou. Era engraçado porque ela fez a revisão comigo verso a verso. Aí eu dizia Leonor, esse verso está com 12 sílabas e ela dizia não está, O'Shea, está com dez. Aí ela fazia as sinéreses (passagem de hiato para ditongo), as diéreses (o contrário) e me mostrava as dez sílabas.
Um pouco para cada um
Cada personagem tem o seu próprio idioleto. Você vê o Falstaff. Ele fala principalmente em prosa, com zombaria, com um registro linguístico meio chulo, mesmo quando ele está com o príncipe. São verdadeiros idioletos. E isso é uma das questões da tradução, porque a tradução precisa observar essa variação linguística dos personagens. O que o personagem fala diz muito mais sobre ele do que o que o narrador explicou que ele era. Então é muito importante que cada personagem tenha o seu registro linguístico, a sua dicção, e Shakespeare observa isso rigorosamente. Nas comédias, temos os personagens que falam em prosa, os palhaços, os rústicos, que falam obscenidades. Os coveiros no Hamlet, que usam vulgaridades, escatologia. E ele fazia isso também porque ele está representando em cada peça a plateia elisabetana verticalmente. Em todas as peças ele tem um pouquinho pra cada um, desde os camponeses, os analfabetos que pagavam um vintém para ficar como groundlings (espectadores do teatro elizabetano que ficavam no pior lugar, com o palco à altura da vista), até os nobres, estudantes e professores de direito, outros autores. Ele tem um pouquinho pra cada um. Então um dos usos da prosa que ele faz é esse. Geralmente. É bom enfatizar isso. Geralmente, nem sempre, a prosa (dele) é usada pra marcar essa caracterização dos idioletos dos personagens. Então ele usa prosa não ritmada, simplificada, praticamente sem imagens nas linguagens dos camponeses, criados, soldados. O verso - geralmente - ele separa para os nobres, os jovens apaixonados, os filósofos na cena, para tratar de temas mais elevados. Aí a fala é mais sofisticada, um registro mais distante do coloquial, metrificada.
Falas extraordinárias
O personagem linguisticamente mais rico seria o Hamlet. Acho que é um consenso. Pelo conjunto das falas é o Hamlet, mas o Shakespeare tem personagens femininos com falas extraordinárias. A Hermione, do Conto de Inverno, a Catarina, no Henrique VIII, a Cleópatra. No caso da Catarina e da Hermione, tem as famosos cenas dos julgamentos. Elas são julgadas por homens, acusadas injustamente, e elas, por opção própria, promovem sua autodefesa na corte. Digamos assim, elas são julgadas pelos que as acusam. Elas sabem que elas vão sucumbir. Todo mundo sabe isso dentro do teatro. Mas Shakespeare confere a elas uma retórica, uma eloquência, uma argumentação imbatível. Pela argumentação elas destroem a oposição. No entanto, sucumbem.