O multiculturalismo e a situação dos imigrantes estão em pauta na Europa há alguns anos. O cinema tem refletido sobre o assunto, de maneira insistente até, há mais de uma década. Dheepan - O Refúgio, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas, é um dos melhores - e mais controversos - filmes sobre o tema. Chega no momento em que fatos - e fotos, como a do menino sírio encontrado morto em uma praia turca - deram ao debate uma projeção internacional que ele ainda não havia atingido.
Entretanto, se você viu os longas anteriores do diretor francês Jacques Audiard, sabe que não deve esperar um ensaio humanista convencional. Em O Profeta (2009), o cineasta usou conceitos explorados nos filmes de máfia para falar sobre a criminalidade nos guetos islâmicos. Em Ferrugem e Osso (2012), o corpo mutilado de uma treinadora de orcas e a violência das lutas de rua serviram de metáfora na discussão das tensões entre as classes sociais em meio à crise econômica. Dheepan é um drama, mas também um filme de ação. Narra a tragédia e, ao mesmo tempo, a redenção pela violência dos refugiados que conseguem deixar para trás a insana guerra civil do Sri Lanka para tentar uma vida melhor em Paris.
A trama começa com uma mulher (Kalieaswari Srinivasan) atrás de uma criança em um cenário de total destruição em seu país de origem. Em seguida, ela, um ex-guerrilheiro dos Tigres de Libertação da Pátria Tâmil (Jesuthasan Antonythasan) e uma menina (Claudine Vinasithamby) que nunca se viram antes recebem passaportes que os permitirão assumir novas identidades e, com elas, mudarem-se para a França. O trauma do trio não é pequeno: eles perderam todos os seus familiares na guerra.
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Dheepan é o - novo - nome do homem. Nenhum dos três fala francês. No caso dele, o bloqueio da língua ajuda a evidenciar a personalidade introspectiva e sua falta de sociabilidade. A narrativa, bastante fluida, os conduz a um condomínio de periferia dominado pelo tráfico, no qual o protagonista passa a atuar como zelador. Yalini, a mulher, logo consegue emprego cuidando de um sujeito doente, familiar de um capo do crime no local. Illayaal, a garota, começa a frequentar a escola, espaço igualmente transformado em território hostil - para quem é de fora, claro.
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Como os mestres franceses, Audiard ama o cinema de gênero - e domina sua técnica como poucos realizadores contemporâneos. No terço final, trata de fazer explodir a violência que, até então, era vista em momentos isolados ou apenas sugerida quando dificuldades se apresentavam e o trio, sem saber como reagir, internalizava suas angústias. Viver a vida dos outros, com a família dos outros, exigia um preparo do qual eles não dispunham, por assim dizer.
É aí que Dheepan envereda pelo caminho da polêmica. Quando o filme ganhou o prêmio mais cobiçado dos festivais - a Palma de Ouro em Cannes -, em maio passado, seus detratores abriram fogo comparando essa explosão de Dheepan, o protagonista, à jornada de personagens como Rambo e à figura de atores como Charles Bronson. Faz sentido, mas não do ponto de vista pejorativo: as sequências de ação são as mais bem filmadas dos últimos tempos (não deixe de ver no cinema, à frente da tela grande e com som apropriado) e funcionam como uma poderosa alegoria das ínfimas possibilidades de volta por cima dos refugiados das guerras do Terceiro Mundo em terras europeias nestes tempos de intolerância.
Só mesmo sendo super-herói, parece dizer Audiard.
Dheepan - O Refúgio
(Dheepan)
De Jacques Audiard
Drama, França, 2015, 109min, 14 anos.
Estreia nesta quinta-feira no Espaço Itaú e no Guion Center, em Porto Alegre.
Cotação: ótimo.