Rei Lear é considerada uma das maiores obras de Shakespeare, uma tragédia complexa e cruel que se apresenta como um imenso desafio cênico. O sombrio universo de Lear pode provocar o medo de seus abismos. Durante cerca de 150 anos, a cena inclusive recusou esse olhar vertiginoso à miséria humana, adotando a versão pasteurizada (de 1681) de Nahum Tate, sem Bobo e com um final feliz em que Cordelia casa com Edgar.
O século 20 resgatou a versão completa de Shakespeare, registrando montagens memoráveis, como a de Peter Brook em 1962. Mas mesmo nesse desastroso século devastado pelos fracassos da humanidade, Rei Lear mantém sua dimensão de angústia, vertigem e horror. Confesso que o texto compõe um universo que me assusta, em seu mergulho na miséria humana: dissimulação, traição, cegueira, vaidade, mentira, rancor, violência, ingratidão, egoísmo, crueldade. Percebo que o que mais me choca nesse desfile de sombras vai mudando com o tempo, com minhas mudanças no tempo: os clássicos, como afirmou Calvino, são obras que se renovam a cada encontro.
Moacir Chaves, diretor do Rei Lear apresentado nesse ano no Porto Alegre Em Cena, reconhece essa condição no programa do espetáculo: afirma que toda encenação de Rei Lear é apenas uma recorte possível. Um olhar específico. Para descobrir esses olhares diversos, assisto diferentes montagens, sem esperar nenhum modelo preconcebido do que deva ou não deva ser Shakespeare, dado a imensa riqueza de possibilidades de leitura de sua obra.
A encenação de Chaves aposta no texto e na composição sonora como principal recurso: ouvimos as palavras, enlaçadas com a música ao vivo, desdobradas em microfones posicionados em sete pontos no palco, ditas pelas atrizes, às vezes pelos músicos. Os diversos personagens são divididos entre essa equipe, sem mudança de elementos de figurino ou adereço, caracterizados apenas por detalhes de postura corporal, vocalidade, gestualidade e pelas plaquinhas com seus nomes, fundamental elemento da montagem.
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Shakespeare se renova e revela outros sentidos a cada época, cada pessoa, cada montagem. Seu universo polifônico, vibrante, divergente e plural oferece múltiplas possibilidades de leitura, recusando sempre uma versão única ou verdade absoluta. Assim, continuamos a nos encontrar em Shakespeare, mergulhando e reinventando seus sentidos.
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As plaquinhas são uma apropriação do recurso também utilizado no teatro elisabetano, aqui empregadas para auxiliar na compreensão da identidade de tantos personagens, alguns representados pelas três atrizes em diferentes momentos, em tantas e diversas situações.
A proposta é de certa forma radical e austera nessa opção pelo protagonismo da palavra, da música e da fábula; apostando na paisagem sonora/textual e na contação de uma história. Mesmo as plaquinhas, que configuram um importante recurso visual, são definidas por palavras escritas (são posicionadas pelas atrizes em diferentes composições espaciais; a imagem final que remete a um cemitério é bastante potente).
Palavras, vozes, intenções, texto. Essa opção não implica em uma composição visual desleixada, de forma alguma, tudo que está em cena é articulado e pensado com cuidado. No entanto, a dimensão visual não é o gatilho propulsor da cena. Ainda que a luz seja sofisticada e bela, o espetáculo poderia ser feito sem luz - mas não sem microfones, teclados e palavras.
O rigor da proposta acaba por definir uma montagem pouco acessível. É provável que alguém que não conheça Rei Lear tenha dificuldade em acompanhar o jorro textual enunciado em cena. Os acontecimentos e personagens podem confundir-se, o espectador pode facilmente perder a viagem se não embarcar no jogo da sonoridade e potência das palavras/texto. A encenação não preocupa-se em ser popular, aspecto do teatro elisabetano que fascinou e influenciou muitos artistas cênicos desde o início do século 20; aspecto fundamental em minha investigação e abordagem de Shakespeare, por exemplo. No entanto, não penso que toda montagem tenha que partir dessa mesma perspectiva. A diversidade possível da arte contemporânea é uma paisagem fascinante, e com prazer embarquei na jornada desse Rei Lear.
Sim, talvez os microfones pudessem ser melhor utilizados em alguns momentos pela atuação, talvez o ritmo de algumas cenas fique prejudicado por jogos de luz (a cena de Edmundo e Edgar na pele de Sandra, por exemplo) ou de nível (o tempo para troca entre as três atrizes para uso do mesmo microfone, com o degrau para compensar diferenças de altura), talvez os vestidos coloridos com matizes folclóricos sejam gratuitos ou ilustrativos demais nessa espécie de telão de fundo que compõem, talvez. Teatro é uma arte em constante processo, se faz a cada noite.
Assistindo ao Rei Lear nessa sexta-feira chuvosa em Porto Alegre, tive o prazer de ver artistas em cena trabalhando com honestidade e desejo, contando uma história que atravessa tempos, espaços e a própria condição humana. Vi essa constante exploração das possibilidades do teatro, com três mulheres como protagonistas de Shakespeare. Tive mais uma vez o prazer de ver Sandra Possani em cena, uma atriz impressionante, jogando, criando e revelando a humanidade de tudo o que encontra. Mesmo na austeridade e economia da forma proposta, me emocionei mais uma vez com os abismos de Lear, com a aventura de aprendizagem, conhecimento e transformação desse velho tão vulnerável, como todos nós. Mais uma vez chorei com Lear e o absurdo da miséria humana, em sua cegueira e estupidez frente a possibilidade do amor.
* Professora e diretora de teatro