O romancista russo Maximo Gorki afirmou em um dos seus livros que há duas razões primordiais para alguém se tornar escritor: ter vivido tantas experiências que se faz urgente compartilhá-las ou ter vivido tão pouco que se torna necessário inventar uma vida substituta. No caso de Krum, personagem da peça homônima apresentada pela Companhia Brasileira de Teatro na programação do 22º Porto Alegre Em Cena, nenhuma dessas motivações parece boa o suficiente: se por um lado a sua primeira e tão desejada viagem ao Exterior só o fez retornar exatamente como saiu - vazio e ignorante -, por outro, a sua reacomodação na existência medíocre e tediosa de um subúrbio não lhe desperta qualquer ímpeto de reinvenção do cotidiano através da imaginação.
Quando a história inicia, ele está nesse ponto, um ponto morto em que não é nem mais alguém tão insignificante (sua viagem o coloca sob os olhares curiosos dos amigos e vizinhos), mas também está longe de ser alguém especial. Cercado por pessoas igualmente desesperançadas e impotentes, o que acompanhamos durante o espetáculo é a total inércia do ser humano. Tal como as três irmãs da peça de outro escritor russo - também elas presas num mesmo lugar com várias pessoas, todas sonhando com a fuga para um lugar idealizado - os personagens aqui veem o tempo passar fazendo questionamentos infrutíferos sobre a melhor hora para fazer exercícios físicos, o tipo ideal de parceiro para se casar, o que se trouxe como souvenir de uma viagem, e outras inutilidades que não vão lhes servir pra absolutamente nada, pois não há nada esperando por eles.
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Mas se em Tchékhov a sensação de imobilidade se impõe pelo artifício de omitir os pontos de virada da peça, nesse texto do israelense Hanoch Levin vemos cada um desses momentos espalhados sistematicamente em cena: acontecimentos importantes que poderiam se tornar marcos na vida de qualquer pessoa, mas que passam por eles sem "se deter o olhar". Amores, traições, ofensas, rupturas, casamentos, humilhações, mortes, nada parece ser forte o suficiente para fazer com que os personagens mudem de direção. E nada parece ser suficientemente bom para que Krum escreva a respeito. E assim, entre evocações de um passado ruim mas ainda melhor do que o presente medíocre, acompanhamos esses sujeitos que preferem desviar o olhar para uma tela de TV ou de cinema, a ter que encarar a imensidão do mar ou o que resta da luz do Sol no fim de um dia que prometia tanto, mas que por imprevistos da existência terminou quando mal começava. O que ficam são duas ou três fotografias que serão guardadas nas pilhas das memórias perdidas até se dispersarem como cinzas sopradas ao vento.
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Sob a direção precisa e imaginativa de Marcio Abreu, o jogo entre os atores se mostra coeso, sem um destaque pesando para um deles apenas. Ainda assim, Renata Sorrah aproveita bem a complexidade de sua personagem, uma mulher apaixonada por um homem que a despreza e que por isso acaba direcionando esse mesmo desprezo aos outros, numa espiral de falta de amor próprio que nos é dolorosa e impactante devido ao trabalho sensível da atriz. Se comparado ao espetáculo Esta Criança (primeira parceria da companhia com Sorrah), a montagem de Krum é claramente superior por articular temas, atmosferas e distintas linguagens de interpretação de modo orgânico e não excludente, numa composição cênica que destaca o não evidente ao olhar, expandindo os significados e não apenas sublinhando os diálogos. A penumbra que nos confunde e surpreende a cada novo movimento da luz, os focos demarcados que recortam e isolam os personagens, as cores e vozes misturadas que nos sugerem o espaço ficcional da ação.
Aliás, a textura sonora nessa montagem tem tanta importância quanto a visualidade: o ruído estrondoso que surge de tempos em tempos parece fazer eco à escuridão absoluta da cena, como se comprovasse a existência de um abismo, um vazio, o núcleo de um buraco negro impiedoso que devora a tudo e a todos, tanto os que estão sobre palco quanto os que estão fora dele. Insaciáveis, eles, no palco, buscam sentir algo através de doses exageradas de comida, bebida, sexo, festas ou mesmo de drama barato. Todas essas distrações, tão comumente servidas a uma audiência de TV ou a uma plateia de cinema, são o que alimentam aquelas pessoas, sem nunca satisfazê-las. No fim, eles se unem a nós na plateia para que juntos celebremos o absurdo que é simplesmente consumir o que deveria ser, de fato, vivenciado.
Krum, assim como os outros, tenta desesperadamente fugir. Relegado à sua prisão naquele terreno aparentemente estéril, o que Krum não percebe é que se ficasse atento à sua volta escreveria páginas e mais páginas apenas sobre as brigas com a mãe, a relação conturbada com a namorada, as conversas insignificantes com amigos. Isso tudo, se reunido, daria ao menos um livro, que quem sabe o possibilitaria escapar pra sempre daquele contexto que tanto odeia. Mas não. Como o próprio Krum argumenta no início e no fim da peça, ele ainda não está pronto. E, provavelmente, nunca estará.
* Dramaturgo