Em tempos ainda mais turbulentos, haverá um governante que, incapaz de resolver o que os especialistas em palavrório chamam "questões de mobilidade urbana" - e descrente também na utopia do mundo sem motor -, promulgará uma lei que isentará de impostos aqueles que trafegarem com um amigo no carro. Parlamentares farsescamente haverão de bradar ser impossível comprovar a amizade através de um para-brisa. E o governante dirá um tão esperado "dane-se". (Havia um cinema em Porto Alegre que cobrava meia-entrada dos casais. Logo havia dezenas de pares de fachada, ao que se instituiu ser preciso trocar um beijo na frente do bilheteiro para comprovar o laço. A exigência de nada adiantou. A moral da história é que mesmo um beijo falso é mais legítimo que boa parte de nossos gestos cotidianos.) Conversas verdadeiras podem acontecer mesmo entre amigos de ocasião.
Com mais pessoas no mesmo automóvel, podemos antecipar o que a alegarão as montadoras, as redes sociais aos tensos anunciantes com o minguar de acessos nos horários de pico, as indústrias farmacêuticas ao perder os negros ouros de seus antidepressivos. Mas a grita será engolida pelos ganhos prontamente visíveis. A começar pela melhora no humor da população. Virá então um aditivo à lei: No transporte coletivo, amigos juntos pagarão um só bilhete. E depois nos aviões. E quanto aos familiares? Também valeriam como amigos? Às questões espinhosas, o futuro responderá.
Quando me vejo preso em um engarrafamento, quase sempre de carona - sou uma espécie de embaixador da vindoura lei -, lembro-me sempre, como muitos leitores de Cortázar, do conto Autoestrada ao Sul, no qual, sem nenhuma explicação e durante meses, o trânsito para, e as pessoas são obrigadas a voltar a se relacionar como seres humanos, ao tempo em que já são os nomes dos carros que ocupam. Penso muito nisso, durante a tranqueira do fim da tarde na Independência (chegará o dia em que o tráfego será um carro parado em frente a cada garagem).
Nesse momento, que possamos ter a parceria de um amigo ao volante, um Pimenta, um Mozart, um Fábio, aos quais dedico esta crônica a ser inteirada com aquele vintão para a gasolina.