A legislação francesa não considera criminosas nem a blasfêmia nem a sátira às religiões, com uma ressalva: o cidadão que se sentir ofendido pode buscar reparação judicial. Mas a lei francesa enquadra racismo e terrorismo no rol dos crimes violentos.
Como o massacre do Charlie Hebdo foi justificado pelos excessos de seu humor blasfemo, algumas manifestações, ao mesmo tempo, prestaram solidariedade aos humoristas assassinados e condenaram o humor politicamente incorreto da revista. O debate dos limites do humor voltou com tudo.
As perguntas: é possível absolver o riso que incita e promove a violência? É correto demarcar as liberdades de expressão? Há fronteiras entre esses territórios? Para Hobbes, o riso é um ato agressivo - pois denota percepção de cabal superioridade. Nessa perspectiva, o "Charlie Hebdo" é indefensável. Será?
Como disse Joel Pinheiro, no artigo "O riso correto da esquerda", "violência não é monopólio de quem está por cima." Uma sociedade que legitima a ridicularização de minorias está doente. Sim. Mesmo que o papa Francisco justifique como naturais reações físicas quando nossas amadas mães são ofendidas, nenhuma minoria pode sair fuzilando o mundo quando se sente ultrajada. O humor entra aí, para escancarar tais contradições. O humor politicamente correto, porém, postula que é possível fazer graça sem que ninguém se sinta ofendido. Não é. Quer que todos os gatos sejam pardos. Não são.
No estranho e premiadíssimo A Cidade & A Cidade, China Miéville coloca duas cidades cruzadas, Beszel (Ocidente?) e Ul Qoma (Oriente?), em convivência permanentemente vigiada. Antagônicas e complementares, as duas organizam-se em grupos radicais, onde o aparato policial paira acima de todos. Não há conciliação. O diferente é o inimigo. Do jeito que a coisa vai, chegaremos aí rapidinho. Apontada como "a ficção do novo século", a fantasia delirante do livro se encaminha, na vida real, para ser um pesadelo permanente.
Cu-ru-zes, como diria o Téo Pereira.