A prática da censura pela ditadura militar, instituída em 1968 com o AI-5, amordaçou e prendeu em uma camisa de força a produção intelectual e artística do país. Como reação ao autoritarismo, à supressão das liberdades individuais e às notícias de prisões, torturas e desaparecimentos, alguns artistas visuais tomaram posição e se arriscaram a criar obras de crítica e resistência. E o fizeram com estratégias como performances e intervenções que deixavam poucos rastros, despistando os censores.
Essas ações, inovadoras para a arte contemporânea brasileira e que hoje jogam luz sobre o turbulento período, tinham o mesmo espírito das táticas de guerrilha urbana, nas palavras de Claudia Calirman, autora de Arte Brasileira na Ditadura Militar. Publicado em inglês nos Estados Unidos pela Duke University Press e eleito livro do ano de 2013 pela Associação de Arte Latino-Americana dos EUA, o volume ganha edição brasileira pela editora Réptil.
A obra é resultado da tese de doutorado da autora em História da Arte pela The City University de Nova York. Jornalista e historiadora carioca que vive há 25 anos nos EUA, Claudia analisa a forma como as artes visuais responderam ao cerceamento da censura. A ditadura no Brasil é apresentada em notável esforço de contextualizá-la ao leitor estrangeiro, com entrevistas e ampla documentação - muito desse material é inédito - que revisitam o período detalhando uma série de arbitrariedades, entre elas o cancelamento do 4º Salão de Arte Moderna de Brasília, em 1967, e o fechamento da 2ª Bienal da Bahia, em 1969 (leia mais abaixo).
- A censura das artes era difusa e imprevisível, o que gerou um ambiente de autocensura pelos artistas. Como não há uma compilação definitiva de todas as exposições que foram alvo, é difícil quantificar. Mas, a cada mostra ou evento fechado e cancelado, dezenas de artistas eram atingidos de uma só vez - argumenta Claudia, em entrevista a ZH.
Um dos destaques do livro é o detalhamento do movimento que resultou no boicote à 10ª Bienal de São Paulo, em 1969. Ao percorrer arquivos de jornais e instituições dos EUA e da França e garimpar documentos pessoais de críticos e curadores, Claudia dimensiona o impacto gerado no Exterior ao narrar a adesão de centenas de artistas e intelectuais estrangeiros que se solidarizaram contra a ditadura. A pesquisa da autora mostra que a imprensa internacional (The New York Times e Le Monde, entre os jornais) fez uma cobertura do episódio bem mais ampla do que a brasileira, então silenciada.
Os demais capítulos são dedicados a três artistas que a pesquisadora considera paradigmáticos da época e que hoje seguem produzindo como nomes referenciais da arte brasileira: Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meireles. O tom crítico de suas propostas, as estratégias de atuação e as inovações que apresentaram são analisados em diálogo com as tendências internacionais dos anos 1960 e 70.
- Esses artistas trataram da questão política ao mesmo tempo em que desenvolveram novas linguagens. Eles não só se opuseram à situação política, como também tentaram reconfigurar o papel dos espectadores, questionaram o mercado de arte, descartaram obras comerciais e desafiaram o poder e a legitimidade das instituições de arte - diz a autora.
Arte Brasileira na Ditadura Militar
De Claudia Calirman
Réptil, 240 páginas, tradução de Dmitry Gomes e Victor Heringer, R$ 60
Cotação: 4 de 5
Algumas exposições e eventos que lidaram com a censura
4º Salão de Arte Moderna de Brasília
Dezembro de 1967
Primeira mostra censurada pela ditadura. Agentes do regime ameaçaram fechar o evento por causa da obra Guevara, Vivo ou Morto (1967), de Claudio Tozzi, que trazia imagens do líder revolucionário. Para evitar consequências, os organizadores cancelaram a exposição.
2ª Bienal da Bahia
Dezembro de 1968, em Salvador
A mostra foi uma das primeiras vítimas do AI-5. No dia seguinte à noite de abertura, a exposição foi fechada por decreto militar sob alegação de apresentar obras de conteúdo erótico e subversivo. Dez obras foram apreendidas, e os organizadores, presos.
Pré-Bienal de Paris
Maio de 1969, no Museu de Arte Moderna do Rio
De 160 obras inscritas, 12 representariam o Brasil no evento na França, mas a mostra foi fechada pela polícia antes de ser inaugurada. O motivo foram duas obras: uma fotografia de Evandro Teixeira de 1965 que mostrava a queda de um motociclista da Força Aérea Brasileira e a obra Repressão Outra Vez - Eis o Saldo (1968), de Antonio Manuel, na qual grandes cortinas negras encobriam imagens de páginas de jornais com manchetes sobre violência da polícia contra estudantes.
10ª Bienal de São Paulo
Setembro a dezembro de 1969
A pré-Bienal de Paris foi o estopim para um movimento internacional de boicote à Bienal de SP. O manifesto Non à la Biennale foi lido em Paris e teve adesão das assinaturas de centenas de artistas e intelectuais que condenavam a realização da mostra em um país sob ditadura e censura. Além da França, cancelaram participações as delegações de EUA, Holanda, Suécia, Grécia, Bélgica, Itália, México e Espanha.
19º Salão Nacional de Arte Moderna
Maio de 1970, no Museu de Arte Moderna do Rio
Recusado na seleção por uma obra que consistia no próprio corpo, Antonio Manuel foi à abertura e fez uma performance provocadora em que ficou nu. O ocorrido ganhou os jornais, e o museu foi interditado.
Do Corpo à Terra
Abril de 1970, em Belo Horizonte
Artistas fizeram nas ruas alguns dos trabalhos mais contundentes do período, tendo de deixar a cidade. Em um arroio, Artur Barrio espalhou trouxas ensanguentadas que sugeriam a desova de cadáveres de mortos pela ditadura. E Cildo Meireles apresentou Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político, em que fixou uma estaca, amarrou nela galinhas, jogou gasolina e ateou fogo.