Os atenienses não lhe deram ouvidos, mas, desde então, alguns surtos iconofóbicos refletiram a intolerância platônica, com motivação religiosa, como na crise iconoclástica bizantina (711 _ 843 d.C.) ou no puritanismo reformista do século 16. No documentário Arquitetura da Destruição (1989), o diretor sueco Peter Cohen analisa a política estética do III Reich, ditada pela ambição doentia e pela idealização neoclássica de um pseudo-artista medíocre. Hostil às vanguardas do século 20, o führer associou gente como os expressionistas Max Beckmann, Ernst Ludwig Kirchner e Emil Nolde, além de Van Gogh, Picasso e Matisse, a uma ameaça ao povo germânico, e tentou ridicularizá-los na exposição Arte Degenerada (Entartete Kunst), inaugurada em Munique, a 19 de junho de 1937. Nos anos seguintes, milhares de obras de arte consideradas ameaçadoras foram queimadas pelas brigadas nazistas; a vida destes artistas tornou-se um inferno, com perseguições, penúria, depressões, exílios e suicídios. O líder e seus sequazes tinham plena convicção de que faziam um bem a sua nação perseguindo e eliminando a arte moderna, tal como faziam com judeus, ciganos, comunistas e outros grupos heterogêneos.
No Livro X da República, Platão (427 _ 347 a.C.) ataca a poesia de Homero e as artes visuais, e promete expulsar os artistas de sua cidade ideal; charlatães, dizia, pois produzem cópia da cópia, formas três graus afastadas da realidade verdadeira, boa e bela, situada no mundo das ideias. Platão temia o naturalismo da arte de Policleto, Fídias e Míron, autores da revolução estética que triunfou em Atenas no século 5 a.C., e criou os modelos e métodos da arte clássica, com seu naturalismo, movimento e liberdade. A expressão da cidade democrática chocava ao defensor da autocracia, postulante a rei-filósofo.
Leia mais:
>>> Projeto determina que novos monumentos sejam aprovados por vereadores
>>> Projeto sobre instalação de obras de arte é retirado da pauta da Câmara
>>> Historiador Jorge Barcellos responde a artigo de Francisco Marshall sobre o projeto de lei que regulamenta a arte em espaço público
>>> Diretor do Margs responde a artigo sobre o projeto de lei para regulamentar a arte pública em Porto Alegre
Em Porto Alegre, não bastasse a ação dos vândalos, que roubam bronzes de toda a estatuária pública, picham e destroem, estamos expostos a outras ameaças, similares às que assombraram a Alemanha há 77 anos. A incapacidade de compreender a arte leva diletantes a atacar a arte pública da cidade, e a pretender controlá-la. O estopim desta chaga foi o artigo do historiador Voltaire Schilling, A Capital das Monstruosidades (publicado em 25/10/2009), que começa atacando Marcel Duchamp e logo põe no paredão boa parte da arte pública da Capital; em que pesem a força e a qualidade das críticas que então recebeu, o artigo animou um sentimento deseducado e, ato contínuo, uma iniciativa legislativa visando a controlar a arte pública na cidade e a subordiná-la a uma série de critérios impróprios. Schilling é citado nas justificativas do PL 237/09, do vereador Bernardino Vendrusculo, que se julgava arquivado, mas voltou à tona, para espanto e terror da comunidade artística e cultural; foi retirado da pauta da Câmara na quarta-feira passada, embora permaneça como ameaça latente.
Paga-se um alto preço pela falta de cultura (elementar) em História da Arte. Vejamos. O PL apregoa que a autorização para a instalação de obra de arte está condicionada a existir "relação cultural entre a obra de arte e o local onde será instalada;" (art. 3º, inciso III). Ora, o alvo número 1 do ataque é a obra Supercuia, de Saint-Clair Cemin, legado da 4ª Bienal do Mercosul (2003), localizada na rótula da Avenida Edvaldo Pereira Paiva, junto ao parque em que ocorrem eventos nativistas. A Supercuia trata com grande humor e ciência a relação há muito percebida entre a cuia e os seios, e organiza em um sólido perfeito a expressão de um ícone da cultura local. A ironia inclui Platão, que no diálogo Timeu diz que deus utilizou o dodecaedro para criar o cosmos; o modelo ideal do filósofo ganha forma, mas provoca na cidade o mesmo furor iconoclasta do autor grego, porém, invertido, aqui, tendo como alvo a arte platônica, geométrica e idealista. A Supercuia interpreta com sagacidade a cultura gaúcha, mas seus detratores não conseguem compreendê-la, e preferem removê-la da paisagem. A falta de equipamento hermenêutico cria tal opacidade que parece tornar a obra inacessível, mesmo que ela seja muito simples e direta.
Outro alvo da iconofobia porto-alegrense, o Monumento a Castelo Branco, obra prima de Carlos Tenius no parque Moinhos de Vento, demonstra, igualmente, o problema da leitura e o desafio de avaliar a arte pública. Schilling listou-a entre as monstruosidades. Pode-se achá-la linda, também, com sensibilidade moderna, mas a sua "monstruosidade" faz parte da mensagem. O primeiro general ditador pós-1964 é figurado por meio de um colosso metálico imenso e pesado, distante, ameaçador, que se sustenta com pouca base, os pés da escultura que fincam o solo, machucando a terra. Inaugurada em 1976, revela a argúcia e a coragem do artista diante de um regime político avesso ao dom maior da civilização, a liberdade. No momento em que se cogita mudar o nome de uma avenida para reparar o passado, deve-se ler corretamente a arte e perceber como a sua permanência demarca na cidade, com inteligência, as dobras e marcas da memória histórica.
Isto exemplifica a impossibilidade de se aferir o critério que pretende, erroneamente, o PL, pois nem seu autor consegue perceber o que propõe. A exigência, ademais, é imprópria, pois as relações da arte com a cultura incluem o local e o distante, o particular e o universal, sem que seja possível ou desejável impedir a existência de arte cosmopolita na cidade. O índice Platão na Supercuia é exemplo claro desta dialética entre o particular e o universal, no caso, Porto Alegre e Atenas clássica, uma praça e a academia. É uma péssima opção herdar dos antigos o cacoete da intolerância, e impor a uma cidade contemporânea o freio estéril do provincianismo.
Porto Alegre precisa de mais, muito mais arte pública, ampliando nosso mundo e a qualidade de nossa experiência estética na cidade; Porto Alegre precisa superar a mania iconoclástica e tratar seu patrimônio com o zelo que merece; Porto Alegre precisa valorizar sua posição na história da humanidade, e fazê-lo criando arte.