Li esses dias um livro que recomendo vivamente a todo mundo que se interesse por infância, por memória e por boa literatura contemporânea. Se chama Nu, de Botas, e seu autor é Antonio Prata (Cia. das Letras). Dito de modo brevíssimo, é uma reunião de crônicas, não sei (e a edição não esclarece) se já publicadas em jornal ou não.
Mas é bem mais que isso: é um belíssimo livro de memórias, surpreendentemente escrito por um sujeito bastante jovem (nasceu em 1977), ao menos para quem, como o acima assinado, já é mais vizinho dos 60 do que dos 50. Eu, que sempre gostei de ler memórias e que acalento o sonho de escrever as minhas (mas para quê? Para quem? Por quê?), volta e meia me pego dando tratos a esse sonho e me recordando que em 1980 li, com enorme vibração, as memórias de Paulo Francis, O Afeto que se Encerra, livro que já reli algumas vezes. Francis o publicou quando tinha 50 anos.
Curioso que a Martha Medeiros tenha se referido ao livro do Antonio Prata como sendo de contos. Não se trata de pinimba terminológica, longe disso, mas para mim há uma nítida fronteira entre conto e crônica - não na linguagem, na abordagem da vida real ou na extensão, que costumam ser parecidos, mas no abismo que separa um texto clara e deliberadamente ficcional, isto é, inventado, não acontecido nos termos em que é escrito (o conto), e o texto cujo centro é um comentário sobre fatos reais, acontecidos, mesmo que aqui e ali magnificados (a crônica).
Mas, dando razão à Martha por outro lado, há no livro do Prata algo de tão forte e significativo que pode tê-la levado a sentir o texto como ficcional - não sei se o prezado leitor concordará comigo, mas para mim é certíssimo que a ficção tem mais força que os outros textos.
Voltas
Antes de falar do livro, conto um pequeno causo desses dias. Meu filho tem agora sete anos e está aprendendo violão, e essa circunstância tem me feito tocar de novo o instrumento, com modestíssima técnica - mas suficiente para evocar algumas pérolas do cancioneiro brasileiro. Um dos visitados é João Bosco; uma das canções, O Mestre-Sala dos Mares, magnífico samba-enredo com letra de Aldir Blanc.
Nos deslocamentos pela cidade, é frequente ouvirmos música, e lá tenho eu botado pra rodar um CD com esse clássico. Nem preciso dizer que o Benjamim decorou a letra e a melodia, sem fazer força alguma, que é como a gente aprende canções e tudo que elas nos ensinam sobre a vida e sobre nós mesmos. De vez em quando me pedia explicação sobre uma palavra, uma passagem. Essa semana ele pediu ao seu professor, o competente Davi da Escola Tio Zequinha, para aprender a música.
E lá entrou ele na bela viagem de aprender a reproduzir a linha melódica nas cordas do violão, frase a frase, anotando e curtindo tudo. Toda essa intimidade me levou a perguntar ao Benja se ele queria saber da história que a canção cantava. Sim, ele queria.
Como contar a ele o sensacional complexo histórico que o talento de Aldir Blanc comprimiu naqueles poucos versos, que ainda por cima foi entortado pela censura, que mandou trocar o "Almirante Negro" pelo insosso "Navegante Negro"? Fui tentando: olha, teve um grande gaúcho de Encruzilhada do Sul (eu me lembrando do belo livro do Alcy Cheuiche), chamado João Cândido, que nasceu no campo mas se tornou marinheiro. Era um cara muito inteligente, logo se destacou e até foi para a Inglaterra, para aprender a manejar um navio que o Brasil tinha comprado.
Nessa época, meu filho, cem anos atrás, a Marinha ainda usava o chicote, a chibata, para castigar os marujos que tivessem cometido alguma falta. Coisa muito errada, vergonhosa, desumana, como faziam no tempo da escravidão, sabe? Pois é. E aí o João Cândido liderou uma rebelião contra isso, que ficou conhecida como Revolta da Chibata, porque era contra ela mesmo. Em parte deu certo a rebelião, pararam de usar esse castigo, mas, como muitas vezes acontece, o líder acabou sendo perseguido e castigado...
"Eu sei, pai; é como o Luke Skywalker, né? Ele também foi perseguido pelo Darth Vader e o Imperador, ele e os amigos dele. Que nem no Star Wars!"
O mundo infantil
Devo ao Arthur de Faria um salve, ao menos: ele me cobrava, há muitos anos, que eu devia ver os filmes dessa série, que eu desconhecia solidamente até este verão, quando vi os seis filmes, um por dia, com o Benjamim. Ao Arthur eu dizia que não precisava vê-los porque eu conhecia o original, o livro O Herói de Mil Faces, do Joseph Campbell, que foi professor e parceiro do George Lucas na concepção da série. Mas ver com meu filho isso tudo, testemunhar os encontros, as disputas, as intrigas da série, de vez em quando me entediando um tanto mas no geral curtindo, foi valoroso.
Valoroso para me recolocar mais perto desse mundo, o da infância, de que eu já estava tão afastado, e que é o mundo do Benjamim e da Dora, com seus quatro anos. Trata-se de um mundo parecido com o nosso, o dos adultos, mas é outro.
Daí o valor superior do livro do Antonio Prata. Seu tema é a vida do autor até aí pelos 6 ou 7 anos. São cenas reais, devidamente trabalhadas pelo excelente texto que ele maneja, narradas desde um ângulo que talvez não tenha existido igual, ao menos em português: o tema é a infância, o astral é o do humor fino e a narração combina, de modo sutil e eficiente, o ângulo de visão da criança que está em cena com o filtro do adulto, do sujeito que entende causas e consequências, comos e porquês, mas que não perdeu contato com a peculiar sensibilidade daquele tempo, por exemplo essa que mistura cinema com história fazendo sentido.
São cenas de vida urbana contemporânea: a geografia é São Paulo, o tempo é os anos 1980, ainda ontem portanto, e os protagonistas uma família de classe média confortável, mãe jornalista e pai escritor (Mário Prata, dramaturgo, cronista, figuraça), com três filhos.
O livro é de crônicas, cada capítulo funciona sozinho, mas é de memórias, porque a justaposição vai criando uma dimensão de conjunto, que porém não é cultivada explicitamente. Mas olha só: o começo, primeiro texto, se chama Gênesis, e a primeira frase é "No princípio, era o chão". A gente lê e pensa, ou menos que isso, sente: claro, bidu! Para a criança o mundo, para além da mãe, é mesmo o chão.
Seguem-se capítulos dando conta do condomínio de casas em que ele morava, de cenas com amigos e com membros da família (pai e mãe se separam em seguida, o pai busca as crianças para voltas no fim de semana), momentos de lazer fora da cidade, experiências da escola. E chegamos ao derradeiro capítulo que narra, muito propriamente, o primeiro enamoramento. Lindo, constrangedor, inesquecível.
Grande livro, pode crer.