E quando não houver mais distância e nem sombras, e quando tudo estiver às claras em óculos capazes de transformar as pessoas em prospectos de investimento, e quando as coisas forem de tal modo esvaziadas de fantasia - a ponto de só nos restar interesses práticos nos relacionamentos -, será que estaremos satisfeitos, libertos da última forma de milagre?
Simon May, em Amor, uma História, não à toa compara o sentimento amoroso (seja o humanitário, o familiar, o amical, o romântico) a um evento religioso no mundo, capaz de oferecer a quem o sente pertencimento e identidade, perspectiva de duração e de porvir, sem os quais a experiência humana tende a mergulhar no deserto do real, onde o sem-sentido natural de todas as ações vem a se tornar insuportavelmente inquietante. Para ajudar o argumento de May, basta vermos como vivem os que se esqueceram da transcendência do amor, capazes de adorar apenas os ícones (corpos), logo iconoclastas, logo incapazes senão de colocar novos ícones no mesmo lugar.
Em um sentido clássico (as revoluções dos costumes não o modificaram), o amor foi construído a partir de uma realidade física - o objeto eleito, associado a uma idealização desta realidade - a projeção do objeto, formada sobre o que desconhecemos (assim também o erotismo), que se revelará sempre de um modo diferente do antes imaginado, em luminoso choque com o que a fantasia inventara antes (no latim invenire é encontrar). Contraditório abismo, desconcerto que fez o autor de Os Lusíadas, Camões, dizer: "Da alma um fogo me sai, da vista um rio;/Agora espero, agora desconfio,/Agora desvario, agora acerto". Eleição cega, improvável e temerosa, beatífica, milagre por nós mesmos engendrado.
Mas imaginar hoje cansa. Supor é laborioso, o milagre, incerto. Simplicidade. Fotografemos tudo. Mistério se compra na butique. Para os recessos da casa sagrada, o sol das redes sociais. Mostremos tudo, rapidamente, no quero-não-quero de dedinhos ágeis no Tinder, submetamos desde já à faceirice boboca de balcão de bar de aplicativos tolos todas as pessoas possíveis, não com a doçura de um Petrarca, ou a cortesia de um Dante, não com o lirismo de um Bandeira, ou mesmo a dureza de um Drummond. Amemos como vampiros idiotizados, já sabemos a verdade, já a sabemos e a compartilhamos: os zumbis elegerão nossa nova Beatriz.