O vovô acomoda os netos no colo para assistirem juntos na TV à gravação de uma sessão de tortura encenada por ele próprio, numa bizarra combinação de canastrice dramatúrgica e orgulho mórbido por seu passado (e provável presente) de matador profissional. Situações desconcertantes como essa pontuam as mais de duas horas e meia de duração de O Ato de Matar, polêmico e premiado documentário que terá sessão especial nesta quinta-feira, às 20h30min, na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro. A exibição encerra a temporada 2013 da Sessão Plataforma, destaque entre os projetos que renovaram o prazer da cinefilia em Porto Alegre apresentando longas-metragens radicalmente inventivos que dificilmente terão lançamento comercial no país.
O Ato de Matar acaba de ser eleito o melhor filme do ano pela prestigiada revista britânica Sight & Sound, está pré-qualificado para disputar o Oscar da categoria e começou sua trajetória conquistando, entre outras distinções, os prêmios do público e do júri ecumênico na mostra Panorama do Festival de Berlim.
Documentário ou ficção baseada em fatos reais reproduzidos por seus próprios protagonistas? Questão interessante e estimulante essa. Embora centre o foco em um episódio histórico - a matança de mais de um milhão de pessoas patrocinada pelo governo militar que assumiu o poder na Indonésia após um golpe, em 1965 -, o diretor americano Joshua Oppenheimer embaralha registro factual, encenação e performance de tal forma que seu filme transcorre na chave de um delirante ensaio sobre a bestialidade humana.
Oppenheimer foi à Indonésia e propôs que sujeitos como Anwar Congo, o vovô citado acima, e outros integrantes do esquadrão da morte formado por uma poderosa milícia paramilitar e gângsteres reproduzissem diante da câmera seus métodos para exterminar "comunistas", como eram (e são) enquadrados tanto os militantes comunistas de fato quanto sindicalistas, camponeses sem terra, intelectuais e imigrantes chineses.
Proposta, imagina-se, não apenas ousada como fisicamente arriscada. Mas esses facínoras de ontem e de hoje, sem nenhum juízo crítico acerca da exposição pública de seus crimes, movidos por vaidade, certeza da impunidade e indisfarçável prazer, aceitam protagonizar uma ópera bufa, um filme de quinta categoria, no qual se divertem, alguns em genuína catarse, alternando-se nos papéis de vítimas e algozes, reproduzindo arquétipos do cinema americano de gênero que tanto admiram.
Coprodução entre Dinamarca, Noruega e Grã-Bretanha, O Ato de Matar foi filmado entre 2005 a 2011 e atraiu a atenção de dois renomados documentaristas, que abraçaram o projeto como produtores executivos: o alemão Werner Werzog (de A Caverna dos Sonhos Esquecidos) e o americano Errol Morris (de Procedimento Operacional Padrão). Werzog, com entusiasmado exagero, diz que Oppenheimer conseguiu concretizar uma experiência surrealista que nem mesmo Luis Buñel alcançou.
Morris, refutando críticas de que falta a O Ato de Matar maior compromisso histórico, afirma que o documentário (esse e outros) não deve ficar preso à obrigação de informar adultos, mas sim ao compromisso de expandir seus horizontes como obra de arte visual e narrativa e provocar o debate em torno de seu tema ou de uma ideia lançada pelo diretor. No caso, Morris destaca que o nervo exposto de O Ato de Matar coloca em discussão como alguém que cometeu crimes terríveis reage quando confrontado com seu passado. Emerge a culpa, a indiferença, o orgulho?
Esses homens reproduzem sem pudor algum técnicas de suplícios lentamente mortais, amputações, o terror psicológico de torturar uma criança na frente de seus pais, fantasiam estupros de meninas e se deixam acompanhar pela câmera extorquindo e ameaçando comerciantes, entre outras barbaridades. São cruéis, mas não sádicos, frisam, buscando justificar as atrocidades cometidas com um preciosismo semântico que pouco importa aos infelizes que, parafraseando um dos mais famosos filmes de Morris, andam sobre a tênue linha da morte esticada por eles.
O registro alegórico, entre o real e o fantástico, os desvios tomados por entre os coloridos segmentos musicais e coreográficos, o espanto diante do perverso amadorismo do teatro macabro, com sua maquiagem grosseira e seus risíveis bonecos de borracha desmembrados, ampliam a potência de O Ato de Matar diante do espectador. A este, impactado entre a indignação, a repulsa e o riso involuntário, são lançados também pertinentes questionamentos sobre os procedimentos éticos de Oppenheimer em sua realização. Filmes estimulantes assim são cada vez mais raros de se ver. Não perca.
Confira o trailer.