Quando lançou Madame Satã (2002), o cineasta Karim Aïnouz usou a expressão "geografia do corpo" para definir suas opções estéticas: no filme sobre o célebre personagem carioca, mais do que erguer cidades cenográficas ou reconstruir ruas do Rio de 1920, interessava a Aïnouz buscar o espírito da época a partir da cartografia expressiva de homens e mulheres daquele tempo.
De certo modo, é o que acontece em Azul É a Cor Mais Quente.
O filme que estreia nesta sexta-feira nos cinemas brasileiros vem referendado pela Palma de Ouro do Festival de Cannes. É inspirado na graphic novel Le Bleu Est une Couleur Chaude, de Julie Maroh (lançada no Brasil pela Martins Fontes), mas mantém sensíveis diferenças com a matriz literária. A começar pelo nome da protagonista, que era Clémentine e passou a ser Adèle, não por acaso o mesmo da atriz que a interpreta, Adèle Exarchopoulos - a repetição, usual no cinema contemporâneo de estética mais realista, permite que as personalidades real e fictícia se misturem, e o mergulho em suas angústias e motivações ganhe intensidade.
É uma geografia do corpo de Adèle que propõe o diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche (de O Segredo do Grão, 2007), que batizou o longa de La Vie dAdèle - a tradução literal do livro só foi adotada pelos seus distribuidores em outros países, o Brasil entre eles.
Dono de uma obra cada vez mais consistente, hiper-realista e calcada em figuras femininas, Kechiche examina o processo de amadurecimento de Adèle. No livro, ela conta sua história em flashback (recurso que não é mantido na adaptação), dos 15 aos 28 anos. No filme, os números ficam de lado - não é esta a cartografia que interessa.
O espectador a vê, inicialmente, como uma estudante insegura que adora ler, sonha em dar aulas e, por conta da pressão social, descobre o sexo com um garoto da escola. Mas é Emma (Léa Seydoux), homossexual mais velha e bem resolvida de cabelos azuis, que chama a sua atenção. Kechiche filma a aproximação das duas com uma ternura arrepiante, distanciando-se do tom panfletário da graphic novel, mas mantendo sua essência: é o desajuste de Adèle, advindo da rejeição de quem a cerca e do medo de assumir suas escolhas, que está em foco.
Kechiche aproxima a câmera da garota como quem quer adentrar seu corpo e captar os sentimentos mais profundos. Azul É a Cor Mais Quente é um épico intimista que se faz, sobretudo, de planos fechados capazes de mapear esses sentimentos em escala superampliada. As polêmicas cenas de sexo (explícito) com Emma são como explosões que dão vazão ao que está reprimido - ou que simplesmente tem a intensidade do amor juvenil mais inflamado. Está aí a justificativa para a eloquência, por assim dizer, dessas sequências. E para sua longa duração (uma delas, contaram críticos em Cannes, superou os sete minutos).
O balé dos corpos na cama pode ter uma visão excessivamente masculina, como apontaram as fãs da história original. Mas isso importa pouco diante das relações de causa e consequência que provocam os atos de Adèle, e da própria representatividade da personagem. Além de se apaixonar por outra garota, ela vai às ruas protestar por causas sociais. Quer viver em um mundo em que as pessoas não fingem sentimentos. Adora a inocência das crianças, mas não pensa em ter filhos. Tem uma utópica obsessão pela verdade, o que a faz contestar instituições e gerações mais velhas.
O choque do público ante o despojamento das imagens é semelhante ao da personagem, que bate de frente com o universo adulto que pouco tem a ver com o que ela sonhava. Mas é um choque que vale a pena. Necessário e, ao menos para o espectador, de uma beleza redentora.
Azul É a Cor Mais Quente
De Abdellatif Kechiche. Com Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux.
Drama, França, 2013. Duração: 179 minutos. Classificação: 18 anos.
Estreia em Porto Alegre, no Espaço Itaú, no GNC Moinhos e no Guion Center 1.
Cotação: 4 de 5 estrelas.