Em atividade durante mais de 60 anos, a partir de 1938, o Liceu Musical Palestrina formou diversas gerações de músicos, tornando-se referência na educação artística no Rio Grande do Sul. A escola foi uma criação do professor, músico e compositor Angelo Crivellaro (1891 - 1957), nascido em Tombolo, no norte da Itália, que havia chegado em Porto Alegre em 1927. Em uma iniciativa inédita, sua obra está sendo resgatada pelo neto, o pianista Benito Crivellaro, em um disco com recital de lançamento neste sábado, às 20h.
Homenagem ao compositor italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina (c. 1525 - 1594), cujo nome faz referência à cidade onde nasceu, a escola localizada no número 305 da Rua General Vitorino, em Porto Alegre, caracterizou-se, em sua primeira fase, pela expansão no interior do Estado, com filiais em diferentes cidades. Depois da morte de Angelo Crivellaro, no final da década de 1950, o negócio passou a ser tocado principalmente pelos filhos, entre eles Antônio Fioravante Crivellaro - pai de Benito -, que projetou o Palestrina até mesmo no Exterior por meio dos Seminários Internacionais de Violão, realizados de 1969 a 1988. Durante 18 anos, até o final da década de 1980, o liceu dividiu espaço com a Faculdade Palestrina. Em toda a sua trajetória, a instituição teria formado mais de 3 mil professores de música no Rio Grande do Sul, segundo algumas estimativas.
A história terminou no ano 2000, quando Antônio, cansado e doente, decidiu encerrar as atividades. Depois, uma outra escola de música chamada Palestrina foi criada na Capital, mas sem relação com a família Crivellaro, que não deteve os diretos sobre o nome. Hoje, o legado do antigo Palestrina segue por meio de instituições como a Crivellaro Escola de Música, que tem Benito à frente, e a Escola de Música de Porto Alegre, de Ângela Crivellaro, irmã de Benito. A relevância de Angelo Crivellaro como compositor e como educador musical, no entanto, ainda é um tema à espera de pesquisadores.
- Não se trata apenas do Angelo. Muitos foram esquecidos na história da música no Rio Grande do Sul - atesta o pesquisador Décio Andriotti, que teve aulas de acordeom com Angelo e, depois, lecionou história da música no Palestrina. - Angelo e Antônio deram uma vida didática muito especial a Porto Alegre. Foram grandes momentos. É uma pena que isso tenha sido esquecido tão rapidamente. Agora, quem participou não esquece. Sempre encontro ex-alunos e batemos papo sobre o período.
Testemunha dessa história, Maria Ecilda Crivellaro, 71 anos, viúva de Antônio, lembra que o Palestrina "era como uma casa". Pode-se tomar quase ao pé da letra, já que o aprendizado às vezes continuava na própria residência dos Crivellaro, onde se reunia uma privilegiada entourage.
- Meu marido sempre foi muito festeiro. Convidava professores, e às vezes alguns alunos, para um churrasquinho lá em casa. Os encontros iam até a hora em que a gente mandava embora, porque eles não paravam de cantar e de tocar - conta Maria Ecilda.
Nas dependências do Palestrina, no entanto, rigor era a palavra de ordem. Músicos populares recebiam uma formação tão exigente quanto a dos interessados na área erudita. Aprendiam a ler partitura e recebiam fundamentos de teoria. A iniciativa supria uma lacuna, uma vez que a música popular não era contemplada no Instituto de Belas Artes (atual Instituto de Artes da UFRGS), fundado em 1908, que estava orientado para a música de concerto. Assim, o Palestrina protagonizou uma abertura de horizontes.
- Sempre houve uma certa diferenciação entre a chamada música erudita e a música popular. Alguns dizem que não temos que dar adjetivos, mas o Instituto de Belas Artes tinha uma certa busca pelo erudito, pela sofisticação. Já o Palestrina levou a música popular a sério. Hoje, essa música está muito mais valorizada - observa Luiz Osvaldo Leite, professor emérito da UFRGS e presidente da Fundação Cultural Pablo Komlós, vinculada à Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa).
Ângela Crivellaro, que tem um projeto de pesquisa sobre o Palestrina, explica que o liceu, em sua primeira fase, ensinava piano, acordeom e teoria musical. A partir da década de 1960, vieram outros instrumentos, como o violão:
- Antes, não havia um sistema de ensino do violão. Um aprendia do outro. Isso mudou. Meu pai (Antônio) viu que havia chegado a bossa nova e a Jovem Guarda, e a juventude queria tocar esse instrumento.
Os Seminários Internacionais de Violão, voltados à música erudita, projetaram o nome da instituição como em nenhum outro momento. Aportaram em Porto Alegre professores vindos principalmente da região do Prata, como o uruguaio Abel Carlevaro (1916 - 2001), mentor de uma geração de violonistas no Rio Grande do Sul. Já os alunos vinham de diversos países da América Latina. Realizados do final dos anos 1960 ao início dos anos 1980, com última edição em 1988, depois de um hiato de seis anos, os seminários contavam com aulas, recitais e concursos.
- Muitos violonistas internacionalmente conhecidos visitaram Porto Alegre por meio do evento. Formou-se uma série de excelentes violonistas na Capital. Alguns professores da região do Prata passaram a morar no Rio Grande do Sul. E diversas composições para o instrumento foram escritas inspiradas nesses eventos - relata Daniel Wolff, violonista e professor da UFRGS, que foi aluno do Palestrina nos anos 1980 e lecionou na instituição na década seguinte. - Era sempre um incentivo muito importante ter todo esse pessoal por aqui. Naquela época, não tinha YouTube. Era muito mais difícil ter violonista com disco, pois o acesso a estúdios de gravação era caro. A única maneira de ter acesso ao repertório que eles tocavam era tê-los aqui.
Uma geração depois, o legado pedagógico do maestro Angelo Crivellaro estava completo. Mas hoje sua obra ainda está para ser redescoberta. Atuou como organista da Catedral Metropolitana durante 30 anos, sendo figura confirmada nas missas de domingo, em que costumava brindar o público com cerca de 15 minutos de música antes e depois do serviço religioso, segundo Maria Ecilda. Compôs para diversos instrumentos, com destaque para o acordeom, e formatos, incluindo coral, missa e ópera. Em 4 de novembro de 1939, sua ópera La Fanciulla della Selva foi encenada pela primeira vez no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, conforme registro do pesquisador Décio Andriotti, que analisa:
- Não assisti à produção, mas faço uma dedução. Seu estilo era o da fase romântica italiana, passando para a fase realista chamada verista. Por isso, ele gostava de Puccini, que era um verista. Nesse sentido, o maestro Angelo acompanhou bem a época. Veio para Porto Alegre em 1927, tempo em que predominou a ópera italiana nas temporadas líricas na cidade.
Em 1972, Angelo Crivellaro foi homenageado postumamente com o nome de uma rua no bairro Jardim do Salso, na Capital. O disco que o neto Benito lança hoje pode ser o início da escrita de uma parte da história da música do Rio Grande do Sul que foi indevidamente perdida em uma esquina do tempo.
Entre dois mundos
Lançamento que recupera um capítulo esquecido da história da música no Rio Grande do Sul, o disco Maestro Angelo Crivellaro por Benito Crivellaro (financiado pelo Fumproarte) é o primeiro álbum com obras do compositor e professor italiano (1891 - 1957) que se radicou em Porto Alegre na primeira metade do século 20. Antes, os únicos documentos que davam acesso a sua produção eram partituras editadas (hoje, fora de catálogo) e manuscritos guardados nas gavetas de familiares. Nesses arquivos pessoais, o pianista Benito Crivellaro recolheu a obra do avô.
O álbum traz músicas para acordeom transpostas para piano. São 10 composições de Angelo, criadas entre as décadas de 1930 e 1950, e uma de Benito - Marcia "In Memoriam" - em homenagem ao antepassado. Embora o cardápio de obras de Angelo tenha englobado uma vasta produção de música de concerto, o que se revela na seleção de faixas do disco é um autor que, na opinião do neto, transita entre o erudito e o popular, assim como Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga.
- Essas músicas do meu avô exigem uma técnica de música erudita, mas a sonoridade fica mais para o lado popular - explica o pianista.
A influência do país de origem está até no título das composições, algumas delas em italiano: Giocando con l'Onde, Stringendoti al Mio Cuore, Di Sera. Outras fazem uma ponte com o país de destino, como a faixa que encerra o álbum, Brazil - Italia, espécie de testamento de um criador que viveu entre dois mundos. Nesse sentido, sua obra ecoa a experiência de imigração dos italianos que colonizaram o Rio Grande do Sul.
- As músicas têm um sentido histórico porque têm características italianas, mas foram feitas em Porto Alegre. Muitas coisas ele absorveu da música brasileira também, porque conviveu com músicos aqui - diz Benito, para quem essas obras instrumentais "narram histórias". - Não conheci meu avô, então estou divagando, mas é certo que ele conta uma história em cada música. Elas são divididas em atos, em partes.
Benito analisa que o avô bebe na tradição operística italiana de autores como Verdi, Donizetti e Mascagni. Mas não apenas isso:
- Tem coisas da música russa e além, mais para o lado da Índia, e também da região do Cáucaso. Assim, diferencia-se um pouco da música popular feita no Brasil na época.
Algumas dessas composições Benito já executava em sua carreira como pianista. Segundo ele, ex-alunos ainda tocam músicas do avô. De resto, trata-se de uma produção que até agora estava distante dos ouvidos do público.
- É uma obra que está para ser descoberta. O acesso às partituras é praticamente impossível. Se alguém quiser comprar, não tem. Por isso, o disco é uma novidade. Uma das grandes funções desse registro é (estimular) a pesquisa.
Recital de lançamento do disco Maestro Angelo Crivellaro por Benito Crivellaro
Neste sábado, às 20h.
Auditório Erico Verissimo do Instituto Brasileiro Norte-Americano (Rua Riachuelo, 1.257), em Porto Alegre. Entrada franca.
O disco estará à venda no local a R$ 20. Também pode ser adquirido na Crivellaro Escola de Música (Rua Caju, 115), fone (51) 3392-2929, e-mail contato@escolacrivellaro.com.br.