Ir ao mar nem sempre foi sinônimo de liberdade e diversão no Rio Grande do Sul. Antes de ser fonte de prazer, foi tratamento de saúde prescrito por especialistas, espécie de recurso medicinal repleto de regras e restrições para pacientes em tratamento de males como anemia, depressão e raquitismo. Em busca de cura, enfrentavam um oceano que ainda despertava mais medo do que satisfação. Antes dos turistas, eram os chamados curistas que se submetiam a dias de viagem de carreta em território inóspito para afogar dores e aflições no Atlântico friorento.
A cultura balneária atual é fruto de mudanças profundas ocorridas ao longo de 200 anos no imaginário popular, nas condições de trabalho e de transporte da população. No começo das viagens ao litoral, ainda no século 19, os veranistas eram em sua maioria europeus ou descendentes de imigrantes da elite rio-grandense em busca da chamada talassoterapia - tratamento de doenças por meio de banhos de mar. Aos poucos, como um animal arredio que vai se amansando, o viajante assustadiço foi se deixando conquistar pelo prazer do contato com a água, a areia e a luz solar.
Somente nas primeiras décadas do século 20 a orla se transformou de ambiente terapêutico em destino de lazer e refúgio idealizado da vida urbana. Nesse mesmo período, foram mudando os costumes, encurtando-se as roupas e as distâncias entre as cidades e a orla graças às estradas e até ao avião - a Varig chegou a fazer uma rota Capital-Litoral a partir da década de 1920. A apropriação do litoral pelos veranistas, que repetiu em solo gaúcho um fenômeno ocorrido em praias da Europa, é resumida no livro A História do Veraneio no Rio Grande do Sul, escrito pela pesquisadora e doutoranda em História Joana Carolina Schossler.
A historiadora gaúcha, que começou a veranear aos cinco anos, em Torres, conta que optou por investigar a evolução da história e da cultura dos balneários após verificar a falta de estudos sobre esse tema em contraste com a grande importância que ele tem na vida da população.
- Os estudos sobre a cultura balneária e o litoral brasileiro ainda são recentes, mas felizmente estão aumentando. O veraneio é uma prática cultural que faz parte da vida dos gaúchos, todos os anos ele se repete, pois seguimos desejando estar alguns dias na praia. Essa é uma das características próprias da história do veraneio gaúcho, pois temos um período de verão delimitado pelos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, além de um litoral muito particular, com uma história peculiar - afirma Joana.
O início dessa história se deu muito longe das areias claras de balneários como Tramandaí, Capão da Canoa ou Torres. Foi nas gélidas e feiosas praias de países como a Inglaterra que a população começou a se lançar ao mar com regularidade e em maior número.
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As origens europeias do banho de mar
O estudo de um médico inglês chamado Lewes, que indicava a água fria e salgada como fonte de efeitos benéficos para o vigor e saúde dos pacientes, foi um grande estímulo à busca das praias como se fossem hospitais a céu aberto ainda no século 18. Em pouco tempo, a população de outros países europeus como França e Alemanha acorria ao ar e à água marinhos - reproduzindo na costa litorânea uma prática também verificada em estações termais.
A nobreza europeia, com tempo e recursos disponíveis, buscou os mergulhos terapêuticos e influenciou a burguesia manufatureira e comerciante a seguir o mesmo caminho rumo à orla. Logo surgiram estações balneárias que ofereciam, entre outras atividades, jogos e bailes. A fruição do mar, porém, pouco lembrava os banhos atuais. No texto Banhistas de Mar no Século 19: Um Olhar Sobre uma Época, o autor Luís Paulo Saldanha mostra como o contato com o oceano se fazia à base de "caldos" com status de tratamento sofisticado:
"Nos braços de experimentados banheiros, o banhista era mergulhado nas frias águas atlânticas uma, duas, três vezes, para os mais corajosos ou para aqueles cujos pais os queriam ver rijos. Outros por receio ou comodidade preferiam a gamela que lhes era despejada pela cabeça ou onde mergulhavam os pés. Havia ainda os banhos de choque: os banhistas eram transportados em cadeirinhas por dois banheiros que de forma concertada, quando as vítimas menos esperavam, os mergulhavam e devolviam ao areal com prontidão."
A fase "heroica" do veraneio gaúcho
Pesquisador radicado em Capão da Canoa, Pedro Ruby Prestes conta que os primeiros moradores da região - além dos índios - chegaram no início do século 19 por estímulo da Coroa portuguesa.
- As primeiras famílias vieram com enxada, machado e espingarda para tomar conta disso aqui - afirma Prestes.
Nos anos seguintes, chegariam os primeiros veranistas, por recomendação de médicos que seguiam os preceitos europeus do tratamento de saúde marítimo. Os alemães e seus descendentes tiveram papel fundamental na adoção da orla tanto no papel de banhistas como no de empresários de hotéis ou de meios de transporte da cidade até o litoral. Segundo Joana, isso ocorria porque, para eles, ir à praia era um "hábito comum" adaptado ao novo contexto, pois as águas geladas do litoral gaúcho se assemelhavam às do Báltico, sendo propícias ao objetivo terapêutico, que preferia o mar frio ao mar quente e os banhos breves aos banhos longos."
Para alcançar a costa, uma carreta de bois levava até oito dias carregando desde pessoas até mantimentos. Muitos viajantes optavam pela tração a cavalo, que encurtava a viagem para dois ou três dias, dependendo do clima. Nos anos seguintes, surgiria o chamado "tráfego mútuo", que combinava ferrovia e navegação a vapor e, no final da década de 1920, a Varig lançaria linhas aéreas para o litoral.
Mas, nos primórdios do veraneio, o mar ainda não era visto pelos gaúchos como fonte de lazer - predominava a lembrança traumática da travessia oceânica dos primeiros imigrantes, as doenças e até eventuais mortes a bordo dos navios.
Dos sacrifícios aos prazeres à beira-mar
Após o pioneirismo dos alemães em enfrentar a frialdade das águas gaúchas sob a penumbra das madrugadas, começou a se multiplicar o número de veranistas em busca de hotéis que ofereciam atividades como bailes, jogos de azar, exercícios programados e condução à orla. Mas já procuravam o mar para outros fins - a diversão - e em horários mais agradáveis. A imprensa gaúcha divulgava fotos que ajudavam a criar nos citadinos o sonho de prazeres (e não mais sacrifícios) à beira-mar e a estabelecer o conceito de uma nova moda de praia menos austera.
Nos final dos anos 1930, ir à praia ficou mais fácil graças à inauguração da rodovia ligando Gravataí a Osório e Tramandaí. O que demorava dois dias passou a levar duas horas de carro ou ônibus, e permitiu o surgimento dos "veranistas de final de semana".
Ao mesmo tempo, as roupas encurtaram e teve início a busca pelo bronzeamento perfeito - até então considerado de alto risco para a pele. Protetores solares, óculos de sol, sombrinhas e outros acessórios passaram a fazer parte do kit básico dos praianos. Na década de 1940, o hábito de se hospedar em hotéis deu lugar a uma outra etapa, chamada "comunitária", em que os veranistas passaram a construir casas no litoral e a adotar padrões cada vez mais individuais para frequentar a praia - sem depender mais das atividades programadas em horários fixos pelos locais de hospedagem, que previam períodos para refeições, idas ao mar etc. Com isso, os banhos passaram a ocorrer em horários mais amplos e variados.
Para atender a essa nova demanda, as cidades litorâneas tiveram de investir em urbanização, iluminação, fornecimento de água. Mas os banhistas não estavam completamente a salvo de sobressaltos: durante a II Guerra Mundial, exercícios com aviões bombardeiros que davam rasantes e chegavam a abrir os compartimentos de bombas (felizmente, vazios) em simulações realizadas a poucos metros da cabeça dos veranistas levavam veranistas a se jogar ao chão ou afundar na água tremendo de medo.
A instituição das férias remuneradas, que garantiu mais tempo e dinheiro para saborear a vida à beira-mar, completou a conquista do litoral que já foi ocupado por carros de boi e pacientes em busca de cura.