Dama da Lagoa, de Rafael Guimaraens
Romance-reportagem, 216 páginas, Editora Libretos, R$ 30 (em média). Lançamento nesta quinta-feira, às 19h, na Praça de Autógrafos
Uma Capital pacata descobre que, entre as classes privilegiadas, também se mata e se morre. É essa a atmosfera central construída pelo jornalista e escritor Rafael Guimaraens no romance-reportagem A Dama da Lagoa, que reconstitui um crime rumoroso da crônica policial porto-alegrense nos anos 1940.
Com lançamento nesta quinta-feira, às 19h, na Feira, o livro segue os moldes do bem-sucedido A Tragédia da Rua da Praia (2005), em que o jornalista reconstituía a Porto Alegre de 1911 por meio da ficcionalização de um assalto real a uma casa de câmbio no centro da Capital. Já em A Dama da Lagoa, Guimaraens reconstrói outro episódio policial, mas de natureza inteiramente diversa. Se no assalto do início do século 20 a violência irrompia trazida por misteriosos elementos estrangeiros (com repercussões inclusive nas decisões tomadas pela polícia do governo autocrático de Borges de Medeiros), no crime relatado em A Dama da Lagoa são as pulsões internas no seio da sociedade grã-fina que motivam o crime e provocam sua estrondosa repercussão.
Na madrugada de 17 para 18 de agosto de 1940, a adolescente Maria Luiza Häussler deixou o baile na tradicional Sociedade Germânia acompanhada do namorado, o impetuoso jovem Heinz Werner Schmeling. Ambos eram apaixonados, mas o romance encontrava resistência da família da jovem. Heinz chegara a ensaiar uma cena no clube após encontrar a namorada conversando com outro rapaz. O jovem Schmeling seria encontrado em um bar no bairro Belém Velho, ferido com um tiro. Maria Luíza não seria mais vista com vida, seu corpo já estava submerso na Lagoa dos Barros, onde só seria encontrado na madrugada do dia 20. O impacto do crime passional envolvendo dois jovens da rica comunidade alemã da cidade ganharia as manchetes por anos.
Ao construir uma narrativa novelesca baseada nesse fato real e em seus desdobramentos, Guimaraens dribla habilmente a maior dificuldade da sua empreitada: a impossibilidade de reconstituir com precisão o que aconteceu entre a saída do baile e a morte da jovem Maria Luiza. Na vida real, Schmeling foi condenado em 1942 pelo homicídio da jovem, mas sempre negou a autoria do crime. Alegou que ela havia se matado depois de ter atirado nele, e que afundou o cadáver na Lagoa por medo de que ninguém acreditasse em sua versão. Como se baseia nos documentos do caso e em notícias dos jornais da época, Guimaraens constrói a narrativa por meio de personagens secundários, e mantém no romance a incerteza que sempre pairou sobre o caso.
Alguns pontos amparam-se em soluções já testadas em A Tragédia da Rua da Praia. Outra vez, um dos personagens centrais é um repórter - o famoso Mário Cinco Paus no livro anterior, o indolente Paulo Koetz neste. Ambos os crimes viram peça de jogo político devido ao caráter autoritário do governo de então: a ditadura positivista de Borges de Medeiros em 1911, o Estado Novo de Getúlio Vargas em 1940.
E as relações entre os personagens são pretextos muito bem aproveitados para reconstruir a sociedade do período: como a II Guerra, então travada solitariamente pela Inglaterra, repercutia em uma Porto Alegre com uma forte e bem situada comunidade germânica; como essa mesma comunidade, formada principalmente por luteranos, relacionava-se com a maioria católica "brasileira"; como a imprensa se mostrava pronta - algumas vezes ainda se mostra - a adotar o ponto de vista da polícia em casos policiais. A lamentar na obra, fruto de sólida pesquisa, apenas dois pontos: a recorrência de muitos deslizes de revisão e a abrupta mudança de foco que parece abandonar e resumir muito rapidamente o interessante personagem de Paulo Koetz na segunda parte do livro, focada em reconstituir o júri.