Na edição de ZH Cultura do último dia 12, Paulo Scott apresentou sua visão dos protestos de rua e afirmou que "o Parlamento brasileiro não presta, acoberta gente que não presta, não serve para o país". Para mim é uma crítica injusta e genérica que não encontra fundamento em dados de pesquisa, e o pior, é feita a partir da visão que toma a experiência do centro do país como referência, já que, "o Rio de Janeiro continua sendo a alma do Brasil", como diz o autor. Ninguém duvida de que o movimento dos professores no Rio de Janeiro ou dos jovens em Porto Alegre seja autêntico, mas daí dizer que o Parlamento não serve a sociedade não é correto. Mostrei em minha tese de doutorado Educação e Poder Legislativo: a Contribuição da Câmara Municipal na Formulação de Políticas Públicas de Educação no Município de Porto Alegre (2001 - 2008) (disponível em http://bit.ly/17NjHeQ) que este diagnóstico não cabe na Câmara da Capital. Entre outros dados distribuídos em 104 tabelas de produtividade, mostrei comparativamente que, enquanto o Poder Executivo produziu no período analisado 543 proposições, o Legislativo elaborou 30.546. No campo da educação, o Executivo foi autor de 18 proposições enquanto que o Legislativo produziu 877. Analisando o perfil de agenda da produção de projetos de lei apenas, vê-se que dessas 877 proposições da Câmara Municipal, 114 correspondem a projetos de lei em 11 temas: Políticas Públicas (18), Semana Educativa (7), Eventos Educativos (6), Ação Educativa (3), Títulos e Distinções (14), Proteção Escolar (11), Adequação da Lei (3), Transporte Escolar(14), Curriculo Escolar (14), Novos Direitos (6) e Organização e Funcionamento (18).
Isto posto, a questão central do debate, em minha opinião, é outra: a crítica e o repúdio à violência, seja a de Estado seja a do movimento Black Bloc nas manifestações. Não é uma discussão nova. O "problema da violência" já estava presente nos protestos de Gênova de 2001, como parte do movimento antiglobalização e ingrediente do espetáculo midiático. Em ambos, seus participantes sabiam que "fumaça, sangue e chamas" atraem a atenção da imprensa e mais facilmente fazem circular a agenda do movimento no mercado de notícias: é lamentável que manifestantes nas ruas de Porto Alegre e Rio de Janeiro atirando pedras tenham mais força que milhares de pessoas que marcham nas ruas com seus cartazes e palavras de ordem. Houve inúmeras vítimas inocentes nestes processos de violência do Estado, como afirma Scott, mas o problema de sua visão é o simplismo exagerado de que tudo se resume a uma luta entre "bons", os militantes, e "maus", a polícia. É mais complicado, não há homogeneidade em nenhum dos lados, em ambos há vítimas e algozes, em maior ou menor grau, eis a questão. Os jovens conseguiram sucesso limitado em sua agenda das ruas pela sua incapacidade de superarem as próprias contradições. Não se trata mais da ideia de que as ações agressivas "destruíram a imagem do movimento", o problema é que a superexposição do gestual de enfrentamento já faz parte do processo, não só não é mais rejeitado pelo movimento como funciona como argumento de unificação e distinção social.
A razão da persistente violência dos grupos Black Blocs, em minha opinião, está naquilo que Alain de Botton denominou de "desejo de status": os novos rebeldes violentos das ruas aspiram à condição de "protetores dos revolucionários", seu gosto é por certo tipo de "status" advindo do fato de que são capazes de "defender os outros", os militantes. Quer dizer, enquanto que, para Botton, o status é distribuído na sociedade quando um grupo o adquire porque pode prejudicar outro, os Black Blocs adquiriram status exatamente pelo contrário, por sua posição em defesa dos manifestantes, daí a complacência destes com sua violência. Da mesma forma, os jovens que foram às ruas pela primeira vez sentiram o gosto do status de serem vistos como "revolucionários". David Horowitz está certo: a razão de tudo isso é que não conseguimos viver com a ideia de que nossas vidas são insignificantes. Por isso, precisamos de uma bandeira, e que bandeira é melhor do que a "revolução"? As pautas das ruas não tinham apenas o objetivo de lutar por mudanças (que são reais, importantes, etc, etc.), elas cumpriam também o papel simbólico de dar uma experiência de sentido à existência.
Tanto os jovens de 2001 como os de hoje têm em comum o fato de defenderem e/ou aceitarem o confronto violento como um instrumento legitimo. O fato de os militantes consentirem com as ações do Black Bloc termina por levar o movimento a uma zona de risco, a do círculo vicioso da violência, na qual manifestantes pacíficos que não tinham intenção de entrar em confronto com a policia terminam por ceder à violência como reação à praticada pela policia. Diz Julia Ruiz Di Giovanni em sua obra Artes do Impossível: Protestos de Rua no Movimento Antiglobalização (Fapesp, 2013, p. 103): "Eis que a violência, ao mesmo tempo em que é atribuída ao Black Bloc, condenado em sua postura agressiva, é permanentemente mobilizada pelos não violentos".
Outro argumento é o de que a violência é uma atitude "estética". A questão que se omite é "estética em que sentido?" O sentido é o de uma arte que desumaniza, que abre mão de qualquer ponto de referência ética para sua definição. Diz Paul Virilio em El Procedimento Silencio (Paidós, 2001, p. 51): "Como muitos agitadores políticos, os artistas de vanguarda haviam compreendido muito cedo o que o terrorismo iria vulgarizar: nada é mais fácil para ocupar um lugar na história revolucionária que provocar um tumulto, um atentado ao pudor, sobre pretextos artísticos" . Não é isso que também vemos nas ruas?
Para mim, os jovens buscam um lugar na História pelos motivos certos com as estratégias erradas. Tão importante quanto ir às ruas abraçando uma causa é alterar nosso comportamento cotidiano, o que passa pelo respeito às instituições políticas. Mas há algo a mais nos gestos recentes dos grupos Black Bloc: não é que estejam enfrentando a policia somente, eles estão é disputando com ela o monopólio do medo, ou seja: subjaz oculto na sua violência o desejo de tomar o lugar do Estado como gerente do medo coletivo. Xavier Crettiez caracteriza as formas de amendrontamento de Estado em As Formas da Violência (Loyola, 2008, p. 68): "o objetivo é exibir, mediante uma impressionante panóplia (capacetes, escudos, cassetetes), uma força que, em termos numéricos, só raramente se equipara ao número de manifestantes. Os jatos dágua, assim como as granadas ofensivas ou lacrimogêneas, tornam-se familiares e permitem manter a distância, sem tocar, os manifestantes mais tenazes. A organização dos ataques é pensada para afugentar, estimular a dispersão, diluir as massas manifestantes, sem degenerar-se em uma caçada". Não é o que faz a policia quando exibe sua impressionante panóplia, amedrontar a população com o objetivo de manter a ordem? E não é o que fazem os jovens, que agora substituem paus e pedras por bolas de ferro e martelos?
Assim, antes de afastar-se dos governantes, como sugere Scott, é preciso lembrar que a cidadania também é o esforço para a melhoria das instituições políticas. Os jovens deveriam lutar para combater a cultura do "nós-contra-eles" definida por Richard Sennet, para reformar a Lei Orgânica do Parlamento a fim de auxiliar na tramitação dos projetos de lei. Na verdade, não o fazem porque não conhecem seu parlamento por dentro, exatamente a posição de Scott, não estudam o Legislativo como instituição e, por esta razão, a invasão da Câmara de Porto Alegre, foi duplamente improcedente. Primeiro, porque é uma instituição que, ao contrário do que imaginam os jovens, produz para a cidade; segundo, porque a violência contra símbolos e espaços não se justifica no Estado Democrático de Direito. A Casa do Povo é democrática por causa de sua função para a sociedade; ela não pode ser democrática no que tange a sua ocupação simplesmente porque isso impede a realização de sua função. Se mesmo assim, os jovens considerarem que seu parlamento não atende aos cidadãos, então as eleições são o momento de revisão e a vontade das ruas tem de ser respeitada, pois o voto é um ato legitimo.