Quem gosta de bolo se deixa levar pelas aparências; os que preferem tortas são seduzidos pela personalidade.
O bolo, alto e todo enfeitado, ganha destaque no centro da mesa da sala de jantar, mas quase sempre acaba decepcionando, ou por causa do excesso de cobertura ou da massa ressecada. Tudo bem. Ele continua tendo o poder de seduzir.
A torta é humilde, carente até, e raramente é o destaque da mesa principal, sendo coadjuvante nas feiras paroquiais, stands de feiras e como parte das competições mais degradantes de comida. O bolo usa maquiagem - enfeites decorativos, cobertura, caligrafia, rococós; a torta se mostra ao mundo como é - quase sempre caseira, com frutas saindo pelo meio, as bordas tristemente chamuscadas.
Só que ela é também divertida; já viu um bolo Floresta Negra ser atirado na cara de alguém?
É também profundamente evocativa. Em seu último livro, Nora Ephron, filosofando sobre a morte, afirmou que a torta seria uma das coisas de que mais sentiria falta. Charlie Price, um garoto de dez anos de Washington que prefere torta de merengue e limão a bolo de chocolate no aniversário, disse:
- Eu amo a torta pelo que ela é. Fruta, caldinho, massa: a torta diz a verdade sobre si mesma.
- A reação a um bolo bonito é quase intelectual. A gente encara o bolo quase como uma obra arquitetônica, mas a reação à torta é emocional - afirma Ken Haedrich, autor do livro de receitas "Pie" e membro da Academia da Torta, escola que ensina a preparar a iguaria on-line.
Até certo ponto, ela sofre de um problema de definição. Em geral, deve ser assada e ter massa na base, às vezes também na cobertura. As feitas só de frutas também entram nessa categoria, mas, cá entre nós, não são doces o suficiente. Tudo bem que os ingleses adoram torta de carne, mas nos EUA a torta quase sempre é doce. As variações conhecidas como crumble, slump, buckle e crocante - Muda o nome, mas a essência é a mesma.
Sabe o que não é torta? Whoopie pie - que, apesar do nome ("pie"), é um sanduíche de massa de cookie recheado de creme. Moon Pie é biscoito e devia pelo menos ter a decência de admiti-lo. E aí, Boston? A torta de creme de vocês não tem massa! Parem de sair dando nomes sem base nenhuma.
A história da torta não é exclusiva aos EUA, mas, sob vários aspectos, é muito ligada a ela.
- Os primeiros colonos norte-americanos queriam reunir o maior número possível de calorias em seus pratos. A vantagem da torta sobre um pedaço de carne simples, assado no fogo, é que ela literalmente armazenava tudo. A massa podia ser problema porque não tinham acesso aos grãos que usavam na Europa, mas se tivessem uma forma e milho, dava certo - explica Andrew F. Smith, historiador de alimentos e escritor.
Até meados do século XIX, a maioria dos norte-americanos não tinha talheres, então a possibilidade de preparar um alimento que podia ser comido com as mãos tinha muitas vantagens.
Um pouco mais de história: os primeiros "adoçantes" usados nas tortas foram o xarope de bordo, graças à abundância dessa espécie de árvore na Nova Inglaterra, e uma versão barata do melaço, pois, até meados do século XIX, o açúcar era caríssimo nos EUA. A primeira receita de torta de abóbora de que se tem notícia foi escrita no século XVII, na Inglaterra, e o processo mudou um pouco, sendo que a massa da base entrou bem depois. Aquela feita com biscoitos moídos, infinitamente mais prática, é relativamente nova: surgiu nos anos 30 e, é claro, causou polêmica.
Desde o início, as tortas de abóbora e maçã sempre foram as mais populares - a primeira porque usa um legume que, tradicionalmente é pouco aproveitado - e a segunda porque aproveitava uma fruta familiar, levada pelos primeiros colonos. Além disso, podiam ser guardadas durante o inverno em caixas de gelo.
Embora as tortas de frutas sejam parte integral da cultura das sobremesas, há várias que nunca receberam o reconhecimento que merecem. Uma vez tentei "encurralar" uma mulher que levou uma torta de leitelho para a minha sogra depois que o marido dela tinha morrido na esperança de despertar sua simpatia e conseguir a receita. Nada feito. Como pouquíssimos restaurantes e lanchonetes a preparam, nunca mais comi.
A "chess pie", típica do sul dos EUA, é praticamente desconhecida. Para o meu colega Paul, as tortas salgadas são total e injustamente desvalorizadas no país, teoria que tentei explorar através de uma pesquisa minuciosa com meus colegas - até que o meu chefe sugeriu que minhas horas de trabalho seriam mais bem utilizadas se eu assistisse a um debate no Congresso.
A torta continua assustando as pessoas e é fácil entender por quê: sua preparação não requer apenas habilidade, mas é também uma arte. Historicamente, as norte-americanas provaram sua capacidade culinária preparando tortas até o final do século XIX, informa Smith. Os alimentos processados simplificaram o processo, embora uma textura perfeita e uma bela cobertura trançada continuem enchendo a boca de qualquer um d'água.
O que não significa que fazê-la seja fácil.
- O pessoal fica nervoso na hora de preparar - afirma Haedrich, observando que há tantas dicas e conselhos contraditórios em relação às receitas que não há como não ficar confuso e inseguro.
E dá algumas dicas: abra a massa sobre papel manteiga, pois fica mais fácil controlá-la; use sempre frutas frescas, de época, pois a torta é mais do que apenas um bom recheio.
- Uma das dificuldades para quem quer fazer uma boa torta é encontrar a fruta no ponto certo. Não lembro a última vez que achei um damasco decente. E não dá para fazer uma torta de pêssego gostosa em novembro. (Só se você congelou as frutas no verão.)
A massa da base quase sempre fica encharcada, mas isso pode ser evitado assando-a primeiro, ou colocando-a no andar de baixo do forno, com fogo forte, para depois abaixá-lo no meio do processo.
- Outra coisa que confunde muito é saber quando a torta está pronta - ele explica, acrescentando que uma torta que se preza deve ser suculenta e borbulhar, senão não vale a pena.
Forrar o forno também ajuda caso sua torta acabe virando um vulcão. Sei que alguns (incluindo alguns colegas) discordam, mas nada de colocá-la dentro de uma assadeira, por favor.
- Isso tende a diminuir o calor de tal maneira que a base acaba ficando meio crua e pálida - ele ensina.
E assim, caros amigos, chegamos ao fim, perfeitamente conscientes de que nossas tentativas podem resultar em massas molengas ou borrachudas, nossa cobertura trançada pode estar mais para cerca de curral do que para decoração de janela bem acabada e o suco da fruta pode estar escorrendo da porta do forno enquanto encara, com tristeza, o rolo de papel toalha.
E daí? Basta pôr a belezura na mesa e dar um sorrisão porque sabe que seus convidados estão prestes a ficar imensamente agradecidos.
- Tem muita gente que acha que não dá para impressionar com uma torta. Preferem fazer um tiramisù ou um bolo com arquitetura mirabolante de morangos - lamenta Haedrich. Bom, eu não curto essas coisas.
Eu sou mais é torta e ponto final.