Seria fácil e ao mesmo tempo simplório liquidar o livro, importante e novo, de Gianni Carta, Garibaldi na América do Sul. O Mito do Gaúcho (Boitempo) como mais uma biografia dedicada à personagem que, com fórmula estereotipada e ambivalente, é chamada de "herói dos dois mundos". Há uma questão que atravessa todo o livro e que o autor insistentemente aborda ao longo do estudo: quem é Giuseppe Garibaldi? Pergunta obsessiva, conjugada lucidamente no tempo presente porque, se por um lado ela pode parecer retórica ativando uma corrente de respostas óbvias e lugares comuns enterrados no imaginário, por outro lado a secular distância que nos separa da experiência histórica sob o marco da exceção de Garibaldi tem criado um depósito exorbitante de imagens complexas, de narrativas opacas, de ícones problematicamente decifráveis.
Outra pergunta surge no livro ao lado da primeira, sendo aliás sua direta emanação: quantas são as máscaras de Garibaldi, como foram construídas e, sobretudo, ideologicamente plasmadas para finalidades às vezes alheias às intenções e gestos do próprio Garibaldi? Perante esta questão, o excesso documental de que dispomos não permite conduzir uma avaliação séria e ponderada do protagonista do Risorgimento italiano que travou muitas outras batalhas por reivindicações regionais e nacionais diferentes, mas conectadas - e aqui surge o problema biográfico - por uma presumida unidade vivencial, uma coerência ideal de princípios e valores. Para quem conhece bem a Itália, como mostra o autor do livro, é evidente que é praticamente impossível repertoriar os lugares que Garibaldi, enquanto motor histórico da construção da unidade italiana, atravessou: não existe cidade ou povoado que não exiba pelo menos uma lápide da passagem de Garibaldi. Este excesso monumental não favorece uma avaliação lúcida da personagem. Alimenta, pelo contrário, uma mitologia biográfica que abre ao observador um labirinto sem saída. O livro de Carta prova eloquentemente este aspecto quando, ao tratar da historiografia garibaldina no Brasil e por direta experiência, mostra os equívocos gerados pela contiguidade do mito com a história.
O enigma Garibaldi, se assim o queremos definir, é justamente esse: a estreita proximidade do fictum e do factum, do mito e da história, que inviabiliza uma reconstrução coerente e lúcida de um passado biográfico rico, complexo, talvez incontornável. A qualidade do livro é combinar uma exegese rigorosa, baseada em amplo espólio documental, em que as máscaras (mortais) de Garibaldi são interrogadas criticamente (o que expõe sua multiplicidade) por um estilo transparente e acessível, que envolve o leitor à procura de uma solução do quebra-cabeça. Trata-se de um trabalho de certo modo terapêutico sobre uma multidão de fantasmas presos no corpo marmóreo da sua pose monumental: não só Garibaldi, mas também Mazzini, Cuneo, Rossetti, Dumas.
O ponto de interpretação que Carta propõe é alternativo. Não procura a totalidade de uma construção biográfica (inexoravelmente marcada pela mitologização e pela relação freudiana entre biografado e biógrafo, como atestam não só as obras oitocentistas, mas também exemplos recentes que abordam a mitologia biográfica sem postura crítica), mas analisa, na qualidade de cientista da comunicação, a construção metafórica de Garibaldi, um Garibaldi pela força simbólica "gaúcho" e "global", a partir do contraponto entre América Latina e Europa, onde processos históricos diferenciados encontram um denominador comum na figura do general italiano. Por um lado, esta perspectiva mostra a modernidade da articulação do personagem que funciona, se diria na semiótica, como um significante vazio, ressemantizado por variadas finalidades históricas. Por outro, explora a natureza imagética das construções simbólicas encontrando o limiar de contato em que história e mito se confundem.
Tal atitude torna o ensaio um estudo sistemático - perfeitamente acessível - de "ideias migratórias", para recuperar um conceito de Ernst Curtius que Sérgio Buarque de Holanda valoriza em Visão do Paraíso, ou seja, como a deslocação de imagens e mitos implica sua tradução, sempre diferencial. Baixo ou alto, de olhos azuis ou verdes (os heróis são sempre jovens e bonitos), matriz oitocentista em trajes gauchescos de outro grande herói intercontinental, mas já de época fotográfica, que foi Che Guevara, a imagem do general de Nice confirma que é relevante refletir sobre a batalha de signos que se consome em cima dos seus despojos simbólicos (como atesta a dupla significação, que ocorre na época do fascismo, de ser ao mesmo tempo símbolo fascista na Itália e totem antifascista no Uruguai). Para nós, italianos, este livro proporciona uma lição contrapontística essencial: o nosso Risorgimento não foi nacional, mas tem raízes profundas fora da Itália, como fato histórico global. Outra história que é parte integral da nossa: é oportuno portanto reinscrevê-la. Sem "parlare male di Garibaldi".