Eu estava terminando a entrada no restaurante premiado com uma estrela no guia Michelin, o La Chassagnette, quando o chef e proprietário, Armand Arnal, correu até o salão e me pediu que o seguisse. Ele me guiou para fora do restaurante até seu jardim de dois hectares de frutas, legumes e ervas.
- Olhe para o céu. Não são fabulosos? Eles estão comendo todos os insetos. Isso prova que eu sou 100% orgânico, e que eu não uso pesticidas - exclamou.
Eu olhei para cima. A lua estava cheia. O céu estava escuro, com pássaros pretos.
Eu olhei novamente. Não eram pássaros. Eram morcegos. Centenas, talvez milhares, deles voando em alta velocidade e em círculos, mudando de direção e se sacudindo enquanto miravam a presa.
Arnal é um chef cheio de surpresas. Por isso, eu acho que não deveria ter me surpreendido pelo fato dele querer exibir seus morcegos. Eu fui até o restaurante dele, afinal de contas, para comer carne de touro.
A carne de touro é uma especialidade aqui na Camarga, uma vasta planície triangular entre o Mediterrâneo e os dois braços principais do Rio Ródano. A região é conhecida pelas lagoas salgadas, a pastagem bruta, os flamingos cor-de-rosa, o arroz vermelho, as minas de sal, os mosquitos ferozes e uma raça antiga de cavalos brancos. E há também os touros pretos, pequenos e musculosos.
Taureau de Camargue, ou touro de Camarga, é um termo genérico para um tipo de bovino criado apenas nessa região. Por mais estranho que possa parecer, o termo aqui é usado tanto para fêmeas quanto para machos (embora "vachette", em referência à vaca jovem, também seja usada para fêmeas adultas). Ambos os sexos têm chifres virados para cima em forma de lira e (segundo dizem aqui) são abençoados com uma inteligência muito superior do que a da variedade espanhola. E, ambos os sexos servem como alimento.
A carne é vermelha brilhante, com um gosto um pouco mais forte do que a carne bovina convencional. Por poderem correr livremente e se alimentarem de comida, eles não desenvolvem o marmoreio gorduroso da maioria das carnes. Sua carne é firme e esguia, por isso, deve ser servida bem mal-passada para permanecer macia.
Arnal, de 35 anos, é um dos campeões gastronômicos dos touros de Camarga. Ele é o fundador de uma organização de chefs locais e outros artesãos de comida dedicados à criação, produção e preparo de produtos de boa qualidade. Ele edita um boletim informativo ocasional, com receitas incluídas. E ele serve touro de Camarga por prazer, não por lucro.
Ele começou cedo naquela tarde, fazendo um coquetel Bull Shot, uma variação do Bloody Mary. Ele usou um grosso caldo marrom de touro, batido com vodca, suco fresco de pepino, uma esguichada de limão, sal, pimenta preta japonesa fatiada, um talo de aipo, um talo de pepino e uma erva local chamada pimprenelle.
- Agora, isto é um verdadeiro Bull Shot - disse ele, conforme esguichava mais limão em cada um dos copos.
Ele foi acompanhado de uma sopa de ervas amargas com bastante queijo brebis; cortes de carne de touro à julienne, marinados na citronela, com salada de folhas verdes; ravioli de carne grelhada de touro com purê de ervilhas; e bifes grossos de touro com berinjela e figos.
Nós bebemos dois vinhos orgânicos regionais: um rosé Marc Kreydenweiss Costières de Nîmes amadeirado, de 2011 e um tinto Roc d'Anglade 2012, de Languedoc. Quando terminamos, às 23h30, os sapos no jardim coaxavam; os touros mais ao longe mugiam.
Em 1996, o touro Camarga tornou-se a primeira carne bovina a receber o cobiçado selo governamental AOC (Denominação de Origem Controlada - DOC), que garante que os animais foram criados em pastos específicos. (esse selo é dado a produtos regionais, como essência de lavanda da Provença, azeitonas pretas de Nyons, lentilhas verdes de Auvérnia e ostras de Languedoc.)
Os touros foram poupados da doença da vaca louca, responsável por infectar animais que se alimentassem de carne e ossos.
- Foi oficialmente determinado que o touro é um alimento puro, ótimo para saúde. Foi um milagre - Arnal disse.
O touro é tanto respeitado quanto promovido na Camarga. As agências de turismo em Arles vendem canecas, pingentes e cartões-postais de touro. La Boutique des Passionnés carrega mais de 2 mil títulos de livros sobre touros, incluindo histórias, livros para decoração, livros de receita e romances; DVDs com brigas de touro; e CDs de música espanhola. Galerias de arte exibem retratos de touros. No antigo teatro romano de Arles, imagens de touros enfeitam os gessos.
E, há a conexão americana. No início do século XX, o Marquês Folco de Baroncelli, um excêntrico aristocrata francês, convidou Buffalo Bill Cody e seu Dakota Sioux para trazerem seu show itinerante Wild West para sua propriedade em Camarga. O marquês, mais tarde, se correspondeu com um chefe Sioux chamado Jacob White Eyes e, às vezes, usava um cocar Sioux. Ele também usou a sabedoria e o romantismo do Wild West para ajudar a transformar as raças locais de touro e cavalos em uma profissão nobre.
Assim como hoje, antigamente o destino primário de um touro de Camarga não era o prato do jantar, mas o ringue. O objetivo é que o animal torne-se um rei ou uma rainha do "percurso" (a corrida), uma versão codificada e sem sangue da briga clássica de touros. As trombetas retumbam. O touro corre pela arena com uma roseta e outros adornos colocados nos chifres. O raseteur, um homem vestido de branco, empunhando um instrumento em forma de gancho em uma das mãos, deve tirá-la. Os raseteurs circulam e entram nas arquibancadas enquanto o touro se recarrega. Às vezes, o touro entra na arquibancada também. A audiência vai à loucura. Toca a abertura de "Carmen".
Para aprender mais, eu visitei Henri e Annie Laurent, que criam touros e cavalos em sua propriedade daqui. Esculturas e pinturas de cavalos e touros enchiam o ambiente; a cabeça de dois touros pretos espreitavam do alto de seus postos, nas paredes da biblioteca. A casa de tecidos Souleiado criou toalhas de mesa, serviços americanos e cortinas com a raça dos touros deles, e o estilista Jean-Paul Gaultier criou roupas ao estilo gaúcho para Annie Laurent. Turistas americanos de cruzeiros frequentemente param para fazer uma visita.
Patrick Laurent, o filho do casal, me disse que todos os touros têm um nome, e os cartazes que anunciam os eventos apresentam o touro, não o homem que vai desafiá-lo. Durante os anos, os touros ganham experiência, astúcia e savoir faire. Apenas os mais fracos (e são muitos poucos) são candidatos ao matadouro. (Touros que participam dos eventos são impedidos de receber o selo oficial AOC)
Goya, um touro da propriedade de Laurent, que morreu em 1986 aos quase 23 anos, era uma estrela tão importante que foi erguida uma estátua dele na cidade próxima de Beaucaire.
- A especialidade de Goya era que ele sempre mandava alguém para o hospital. Ele era um trapaceiro - exclamou Henri Laurent.
Patrick Laurent e eu dirigimos entre os touros em uma pick up. Cada um foi marcado com seu próprio número. A maioria nos deixou passar, mas um era tão espirituoso que correu e pulou perto da caminhonete como se quisesse brincar. Laurent apontou outro que mancava porque havia quebrado uma perna alguns anos antes.
- Já que ele era uma estrela vamos deixá-lo viver com dignidade e morrer de velhice. Talvez apenas um a cada mil seja um preguiçoso que não presta para nada. Só aí você os mata. E os come - ele disse.