A fricção entre o clássico e o moderno, notável vedete do século 20, tem na obra de Jacques Rivette um de seus capítulos mais arrebatadores. Saint-Just da redação da Cahiers du Cinéma, cronópio da Nouvelle Vague: o cineasta francês é um grande colecionador de ficções - "Sherazade é a minha santa padroeira".
O entusiasmo narrativo pode ser explicado pelo baile de musas que Rivette promove com a tranquilidade de quem está numa conversa prosaica entre velhos amigos: da linguagem de Corneille, das tragédias de Racine, do surrealismo de Feuillade, das conspirações secretas de Balzac e Lewis Carroll, da fantasia de Piazzolla. Ao contrário do que acontece com muitos de seus contemporâneos, em Rivette a cultura não é um elefante que o destino se encarregou de amarrar nas costas do artista moderno, mas uma porta aberta para a invenção.
Sala P.F. Gastal exibe mostra do francês Jacques Rivette e filmes que o inspiraram
De qualquer forma, a inspiração maior, a grande responsável pelo incontornável mistério de seus filmes, são as ruas de Paris - porque o cinema de Rivette é o cinema de quem quer ocupar tudo: os burocratas, os confortáveis, aqueles que ficam na janela batendo palma para a polícia, fazem parte de um universo pálido cuja mesquinharia não encontra eco ali.
Pois o universo rivettiano celebra uma intensa festa ao mistério da criação. Como crítico, ele sentiu a necessidade divina de inventar um cinema diferente de tudo o que já tinha sido visto (e escrito). Como cineasta, especialmente a partir de 1968, no desfile de obras-primas Amor Louco, Out 1, Celine e Julie Vão de Barco, A Bela Intrigante, percebeu que deveria reinventar tudo. O que é Rivette senão o cineasta das coisas acontecendo, do presente contínuo? Por isso a duração tão longa dos filmes (quatro, cinco, 12 horas!), já que as coisas não acontecem num piscar de olhos - embora muitos artistas apressados vendam essa ideia.
Impressiona a paixão com que o francês acompanha os mais diversos trabalhos de parto: do teatro à pintura, chegando, obviamente, ao cinema. Sua câmera, às vezes clássica e de uma precisão estética que acena aos mestres Preminger e Mizoguchi, às vezes moderna e violenta fazendo par com as ações mais radicais do cinema underground, é o próprio gato que descansa com os olhos abertos: não perde nada. Mas não há mais inocência, Rivette não filma milagres; filma o esforço, o suor, o gasto extraordinário de energia. Talvez por isso que sua obra nunca deixa de ser contemporânea.
* Jornalista, crítico de cinema e
programador da Sala P.F. Gastal