O corpo, na manifestação, é o estado da vulnerabilidade. Estar em uma manifestação é não saber o que está acontecendo dentro da própria manifestação. O corpo, na rua, não consegue compreender o todo captado pelo olho do helicóptero. No chão, tudo é horizonte. No chão, o todo é quem está do teu lado.
Estar em uma manifestação é compreender o manifesto não a partir do filtro das telas, mas da realidade dos gritos de guerra, das danças pedindo paz e do cheiro forte de gás lacrimogêneo que, cedo ou tarde, acaba infestando a avenida. A violência das bombas, a organização dos vândalos e a vontade coletiva de mudança só podem ser experimentados no corpo exposto ao acontecimento. Sair do sofá e entrar em uma manifestação é partir do pressuposto de que é impossível decodificar em palavra o que acontece hoje nas ruas das grandes capitais.
Os números nos fazem desconfiar. Engarrafado na 24 de Outubro, escuto no rádio a informação de que o ônibus incendiado na João Pessoa, na noite de 17 de junho, teria custado à empresa o valor de seiscentos mil reais. Me pergunto se a empresa não teria seguro e cogito checar o valor do ônibus no Google, a título de curiosidade. O radialista, ausente da mesma dúvida que eu, dá a notícia como verdade. E assim cristalizam-se informações.
De noite, tentando conter a revolta da população, o governo anuncia mais do que o não aumento, a redução no preço das passagens. Uma redução que acontece não à custa da diminuição do lucro das empresas de ônibus. Reduzir o preço da passagem injetando dinheiro público é desvio de verba. Um dinheiro que poderia ser usado no país é perdido afim de que se assegure o lucro do grande empresário. Para cada centavo que o ônibus baixar, menos dinheiro o Brasil terá em caixa. As manobras para se conter a revolta popular ainda mexem todas no bolso do cidadão. No dia em que tivermos consciência sobre o quanto do nosso dinheiro está sendo usado em transações comerciais para sustentar grandes fortunas privadas, teremos um pouco menos de compaixão pelas vidraças quebradas dos bancos e das revendas de automóveis. Se soubéssemos o rombo que tais empresas já fizeram em nossas finanças, seríamos, talvez, um pouco mais solidários aos vândalos.
A própria noção de vandalismo mudou. Basta assistir à farra no congresso para saber onde está o vandalismo e, por consequência, tomar parte do movimento que vai às ruas pelo direito de poder gritar bem alto para as câmeras de um mundo que nunca nos olhou tanto: tá tudo errado! Se acreditavam que a Copa venderia a favela maquiada e a Marisa Monte cantando Vila Lobos, se enganaram. O que o mundo assiste nessa Copa que antecede a grande Copa é o angustiante retrato de um país em guerra. Uma seleção que, mesmo ganhando, nunca sorriu tão pouco. Como se recebe um visitante quando a nossa casa não está em ordem?
Quando, na João Pessoa, a manifestação canta o hino Rio Grandense sob aplausos e panos brancos de praticamente todas as janelas dos grandes edifícios, nada faria não acreditar na liberdade de expressão. A grande maioria dos que subiram na direção do arroio da Ipiranga na noite de 17 de junho foi na certeza de que marchava pela paz. Se Nietzsche só pode acreditar em um Deus que dança, o corpo nas ruas de Porto Alegre na noite de 17 de junho, de um jeito ou de outro, também rezou. O Deus Nietzschiano, incorporado em cada cidadão, instaura o ritual dionisíaco e, talvez pela primeira vez, bomba e libido ousaram dançar juntos.
Um Estado de Guerra se constrói aos poucos. No Brasil, já faz tempo que estamos nos cobrando a nossa própria guerra interna. Se atribuíamos o sucesso da Europa ao seu espírito bélico, normal termos acordado. A poucos metros do arroio da Ipiranga, as primeiras bombas. À medida que a manifestação se aproxima da sede da Zero Hora, os tiros. O gás. A maioria, acreditando estar tudo na paz, segue aglomerando o epicentro da confusão. É preciso povoar as zonas de guerra. Outros, com medo, mas sem querer desistir, ensaiam um desvio pela Lima e Silva. Por estar aqui há muito pouco tempo, não sabia eu que a Lima e Silva desemboca na Ipiranga. Em noites de batalha, entende-se a geografia de uma cidade à partir das suas rotas de fuga.
No bolso do casaco, o celular apita. É um amigo de SP, querendo saber como estão as coisas na capital dos gaúchos. "Aqui tudo tranquilo, com bombas", respondo eu. Nunca pensei uma dia escrever uma frase como essa.