Se nos anos 1990 muitos autores, sejam eles do campo da literatura de ficção científica ou da filosofia e da sociologia, apostavam em uma desmaterialização dos corpos devido aos ambientes digitais, na atualidade cada vez mais percebemos que a dicotomia cartesiana "mente versus corpo" parece fazer menos sentido. Conforme autores como o alemão Hans Ulrich Gumbecht, por exemplo, a "cultura da presença" e o papel dos corpos tornam-se cada vez mais fortes, seja nas representações da mídia ou na forma como nos moldamos ao uso dos artefatos tecnológicos.
Nesse sentido, o exemplo atual e a discussão sobre o caso da atriz Angelina Jolie e seu processo cirúrgico de mastectomia em função da possibilidade do câncer de mama - notícia amplamente divulgada pela mídia internacional e nacional nos últimos dias - se apresenta como um pano de fundo interessante para pensarmos questões a respeito das reconfigurações e do lugar do corpo na cultura contemporânea em suas interfaces com as tecnologias. As contribuições das materialidades da comunicação, as relações entre agentes humanos e não-humanos e as questões de identidade de gênero despontam como algumas das possibilidades de análise sobre a repercussão do caso.
As questões relativas ao corpo estão presentes nos âmbitos teóricos desde o princípio da filosofia e da ciência. No entanto, com o avanço das tecnologias, entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, a ficção científica e as ciências humanas que se dedicaram a pensar a cultura digital passaram a tratar com mais afinco da relação corpo e tecnologia. Para alguns teóricos, havia uma constante tensão entre a alta tecnologia, a vida ordinária e a busca pela "transcendência tecnológica", com a temática da descorporificação ou desmaterialização, tratando a mente como uma entidade separada do corpo, sendo a "carne", uma estrutura sem uso no ambiente do ciberespaço, por exemplo.
Uma sociedade que estimula as extensões corporais (como os óculos, as lentes de contato, etc.) e as modificações corporais, seja pelas drogas sintéticas, pelas cirurgias plásticas, por piercings e tatuagens, pela engenharia genética ou pelos implantes de membros, parece, dado o contexto do cenário urbano e teórico do período, cada vez mais receptiva à figura social e ficcional do ciborgue, proposta pela pesquisadora da ciência e feminista Donna Haraway na publicação hoje clássica Manifesto Ciborgue, de 1985.
Nesse ensaio a autora norte-americana define o ciborgue como um organismo cibernético híbrido, ligado tanto à realidade social quanto à ficção. Ele se apresenta como uma mistura entre homem-máquina tanto quanto entre os gêneros masculino e feminino, mudando o eixo nas relações de poder de gênero. Ele/ela aparece como uma fabulação que mostra a emanação do poder do corpo, descentralizado de uma raça, um gênero, uma classe social, servindo tanto como uma figura da ficção que explica a realidade social quanto como uma paródia política através da arte, como propõe o ciberfeminismo.
Essa figura do ciborgue está presente nos mais variados campos do conhecimento como a medicina, a biologia, a engenharia genética, a comunicação, entre outros, além de ter sido apropriada pelas narrativas de ficção científica. Donna Haraway comenta que "Os cyborgs são um mapeamento ficcional da nossa realidade social e corporal, além de uma fonte imaginativa que sugere algumas associações muito frutíferas".
Nos interessa aqui a alegoria mítica do ciborgue para representar as profundas relações homem-máquina e para nos fazer pensar, que no caso da atriz hollywoodiana, o acontecimento midiático possui uma carga simbólica que vai além das relações corpo e mídia, mas se localiza nas instâncias do imaginário tecnológico e ficcional. Como se estivéssemos lidando com a trama de um filme sobre o futuro, Angelina pôde, devido à ciência genética e aos artefatos tecnológicos, ter acesso antecipadamente aos dados que indicavam sua predisposição ao câncer de mama. Tomou, então, uma decisão considerada polêmica ou racional por muitos: extirpar o par de seios para tentar burlar a doença e colocar um implante de silicone, procedimento efetuado por várias mulheres no mundo, mas que, por não terem a notoriedade de Angelina, não ganham o estatuto de acontecimento. Do meu ponto de vista e das teorias de gênero, não cabe discutir as escolhas da atriz, o corpo é dela e pode ser por ela manipulado da forma como decidir.
A partir dessas premissas, contudo, podemos pensar nesse acontecimento jornalístico a partir de três eixos. O primeiro deles trata da constituição de uma narrativa da ordem material que posiciona a noção do corpo novamente no centro dos debates contemporâneos, contrariando as teses de desmaterialização defendidas por muitos teóricos da cultura digital no final do século passado. Na sociedade contemporânea, os conceitos de presença e de corpo são uma parte tão importante da cultura e de sua materialização quanto a mente. O segundo eixo do episódio centra-se em uma narrativa que está relacionada ao imaginário científico-ficcional, no qual a ciência e a tecnologia parecem corroborar a tese de Marshall McLuhan sobre as tecnologias como extensões do homem. Nesse sentido, é ainda mais interessante o fato de que Angelina Jolie deu vida nas telas de cinema à personagem Lara Croft, uma personagem de um videogame, criatura não humana materializada em um corpo humano digital e mais tarde traduzido para as telas no corpo - também modificado - da atriz. Um terceiro eixo diz respeito às discussões sobre corpo e gênero que se fizeram presentes nas conversas em redes sociais. O fato de ser um corpo feminino cuja performatização do gênero se dá em muito no elemento dos seios trouxe à tona uma série de manifestações sobre as relações entre "natureza" e "artificialidade" e sobre a própria performatização do gênero feminino, como aponta a teoria queer por exemplo.
São questões efervescentes da cultura atual e que mostram que a volatilidade dos corpos e sua presença tecnologicamente mediada e reconfigurada nos traz apontamentos importantes para a compreensão da sociedade em devir.
*Professora do PPG em Ciências da Comunicação da Unisinos. Pesquisadora do CNPq. Doutora em Comunicação Social pela PUCRS.