Zero Hora - Onde a senhora nasceu e cresceu? Quem eram seus pais?
Nasci no ano em que morreu Monteiro Lobato, 1948, em Porto Alegre. Minha data de nascimento é 11 de junho, mas fui registrada em 3 de julho. Meu pai, Leon Levin, estava sempre com mil coisas na cabeça. Minha mãe, Guilhermina, dizia que ele havia demorado para fazer o registro, e como 3 de julho de 1947 era a data de casamento deles, tenho a impressão de que foi a data que ele lembrou. (Risos.) Vivi até os 15, 16 anos na Rua Francisco Ferrer, ou seja, no limite do Bom Fim (a Rua Francisco Ferrer está situada no bairro Rio Branco, vizinho ao Bom Fim, onde se radicaram imigrantes judeus da Europa Central e Oriental). Não é o Bom Fim do Moacyr Scliar, mas é aquele espaço.A família morava toda na mesma vizinhança: meus pais na Francisco Ferrer, meus tios e minha avó na Cesar Lombroso. Passei a infância por ali, e depois nasceram meus irmãos. Estudei em escola pública até ingressar, no ginásio, no Colégio Israelita.A família da minha avó materna, Celina Lerrer Milman, veio da Polônia logo depois da I Guerra Mundial. A família do meu pai, de onde hoje deve ser a Ucrânia.Todos vieram primeiro para o Interior, perto de Passo Fundo, e depois se mudaram para a Capital e se dedicaram ao comércio. Tenho grande afeto por Passo Fundo em parte por isso - indiretamente, minhas origens estão lá.
ZH - Conheceu seus avós?
Somente minhas avós. Minha avó materna tinha um gosto enorme por literatura, teatro, música. Quando solteira, ela fez teatro amador. Sem ser atriz, gostava muito de literatura, e acho que isso passou para minha mãe e para mim. Gostava muito de ouvi-la contar histórias, ler em voz alta. É algo de que tenho muita saudade. Embora fôssemos judeus, ninguém era religioso. Fui estudar no Israelita e não havia qualquer influência ou preocupação religiosa. Senti alguma coisa de antissemitismo nos anos 1950, depois nunca mais. Tanto que fui fazer doutorado na Alemanha. Um escritor pernambucano me perguntou:"Como é que você vai para a Alemanha?". Nunca pensei que devia me sentir mal na Alemanha. Havia muitos judeus no país já naquela época, boa parte da comunidade judaica retornou depois da guerra. Peguei um momento muito bom do Israelita, que estava tentando ser uma escola de vanguarda, com muito estímulo à vida cultural.
ZH - Quais foram os professores que a marcaram?
Sempre lembro Guilherme Finkelstein, que era professor de português. Ele odiava dar aula de gramática, dava aula só de literatura e eu estava na minha. (Risos.) Depois ele foi diretor da escola por algum tempo, e logo que comecei a faculdade dei aula no Israelita ainda quando ele era diretor. Finkelstein contratou professores com muito gosto pela literatura e pela cultura. Flávio Loureiro Chaves foi meu professor no Israelita, ainda estudante de Letras, e depois na faculdade.Ruy Carlos Ostermann foi meu professor de Filosofia no Israelita, a primeira turma da vida dele foi a minha.Era também muito bom, à moda dele, sem preocupação em seguir programa, avaliação. Queria estimular o pessoal a ler e estudar. Quando começou a nos dar aula, nos fez ler O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche. Eu não entendia bulhufas, mas lia. (Risos.) Lemos A Rebelião das Massas, de Ortega y Gasset. Estudamos Sartre. Foi um Ensino Médio muito qualificado, embora pouco organizado. No último ano, que foi 1966, o pessoal se focou no vestibular. Eram os anos 1960, a ditadura não tinha recrudescido. A gente só sentiu a mudança de ambiente na faculdade.
ZH - Como a senhora optou pela Faculdade de Letras?
Decidi fazer Letras quando fui fazer vestibular, na hora da inscrição. Pensei em fazer Medicina, Ciências Sociais, Jornalismo, não sei o quê, e na hora de preencher o papelzinho disse: "Eu quero é mesmo fazer Letras". Me inscrevi e passei. Não era tão disputado quanto hoje porque a gente fazia a seleção por faculdade. Cada um fazia dentro do seu nicho, não era esse estresse todo. Já havia cursinho, mas era diferente, a gente pegava mais leve. Entrei em 1967 na Faculdade de Letras. Angelo Ricci era o diretor na época. Tivemos dois anos muito bons, 1967 e 1968, mas em dezembro veio o AI-5. Em 1964, tinha havido várias cassações de professores, como Ernani Maria Fiori e outros. Em 1969, o Curso de Letras foi bem atingido, a começar pelo próprio Ricci, que era diretor. (Em 26 de fevereiro de 1969, foi editado o Decreto-Lei 477, conhecido como "AI-5 das universidades", que permitiu cassação de professores e expulsão de alunos de escolas e universidades.)
ZH - A senhora era aluna de Ricci?
Não, porque ele era o diretor. Mas havia o Dionisio Toledo, muito bom professor de Teoria da Literatura. Ele tinha um grupo muito bom, do qual fazia parte Maria da Glória Bordini, então jovem professora. Ambos foram cassados. Foi tudo por água abaixo. Outro atingido pelo AI-5 foi Gerd Bornheim, professor da Filosofia, com quem eu tinha feito algumas cadeiras. Nesse momento, a faculdade se tornou um lugar para pegar o diploma e ir embora.A gente tinha muito medo,não de os colegas serem dedos-duros, mas de ocorrer de repente uma nova catástrofe. Havia muita autocensura. A gente estudava em grupo, mas não ficava se abrindo muito. Estudava-se marxismo, essas coisas, mas não se comentava. Depois que nos formamos, íamos com frequência a Buenos Aires e Montevidéu comprar livros,ver filmes proibidos.
ZH - Quem era esse grupo?
Ana Mariza Filipouski (professora da Fapa), Maria da Glória Bordini (professora colaboradora da UFRGS), Luiz Arthur Nunes (diretor teatral).Minha turma de Letras tinha muita gente boa: Caio Fernando Abreu (jornalista e escritor), que foi embora em 1968, João Gilberto Noll (escritor),Antonio Hohlfeldt (escritor e professor da PUCRS).Vários foram trabalhar na universidade, mas o clima era pesado.Por isso, pensei em ir fazer o doutorado fora.
ZH - A senhora já era casada?
Sim. Casei em 1969, durante a faculdade, como todas nós fazíamos. (Risos.) Comecei a dar aula porque não tinha mais pai e mãe para ajudar, e meu marido, Isaac Zilberman, trabalhava num projeto binacional Brasil-Alemanha que se tornaria a Metroplan. Era o início do governo de Willy Brandt (primeiro chanceler social-democrata da antiga Alemanha Ocidental), e havia muito apoio à América Latina.Fui morar em Heidelberg porque era a cidade próxima da localidade em que Isaac estava fazendo estágio. O ambiente da universidade era muito livre, oposto ao do Brasil.Vivemos na Alemanha em 1973 e 1974. Retornamos ao Brasil, e voltei à Alemanha em 1976, com bolsa do DAAD Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico, sigla em alemão),para apresentar minha tese.
ZH - A Literatura no Rio Grande do Sul foi publicado apenas quatro anos depois da obtenção de seu doutorado, mas não era exatamente o tema de sua pesquisa.
A tese não era sobre literatura no Rio Grande do Sul, mas eu já trabalhava nela com Simões Lopes Neto e Erico Verissimo. Meu grupo da faculdade fez um trabalho importante ao estudar Simões Lopes, que estava meio esquecido. Depois, o Flávio (Loureiro Chaves) também fez uma tese, os cursos de pós-graduação começaram a estimular o estudo. Maria da Glória Bordini, Luiz Arthur Nunes, Ana Mariza Filipouski e eu publicamos em 1973, pela Movimento, um livro chamado João Simões Lopes Neto - A Invenção, o Mito e a Mentira. O título é do tamanho de uma tripa, a gente não tinha nenhuma experiência editorial. Fizemos esse título porque nele tínhamos de dizer tudo. Hoje aprendemos algumas coisas. (Risos.) Enfim, eu vinha trabalhando com literatura sul-rio-grandense desde o fim da graduação. Quando comecei a trabalhar na PUCRS, em 1977, uma das linhas que valorizei foi a de usar fontes primárias da literatura do Rio Grande do Sul. Naquele momento, era importante o que Guilhermino Cesar vinha fazendo na UFRGS e o que Elvo Clemente estimulava na PUCRS. Elvo não chegou a escrever muito sobre a literatura no Rio Grande do Sul, mas comentava muito esse tipo de pesquisa e tem um livro sobre Lobo da Costa. Formei um grupo de trabalho sobre literatura e crítica literária, fizemos um livro sobre Partenon Literário e, durante dois ou três anos, trabalhamos nisso. Não pensava em escrever livro sobre o assunto. Mas aí entram Sergius Gonzaga e a editora Mercado Aberto, recém-criada pelo Roque Jacoby. Eles resolveram criar linhas editoriais e séries vinculadas ao Rio Grande do Sul, e o Sergius me pediu um livro sobre literatura.
ZH - A série já se chamava Revisão?
Passou por vários nomes, mas no final ficou Revisão. Sandra Pesavento tinha escrito História do Rio Grande do Sul, Luiz Roberto Lopez fez História do Brasil em dois volumes, e a ideia era que meu livro fosse História da Literatura do Rio Grande do Sul. Eu disse: não,esse título é muito pretensioso, o Guilhermino (Cesar) fez um livro sobre o assunto (História da Literatura do Rio Grande do Sul, 1956), e eu não quero fazer um livro igual. Mas, especificamente, o livro foi uma encomenda. Em um ano, o livro foi encomendado, escrito e impresso. Hoje, penso: como é que eu consegui?
ZH - O livro não dá a ideia de ter sido escrito de forma apressada, e sim de ser um verdadeiro remapeamento dos estudos de literatura do Rio Grande do Sul.
Pude fazer o livro em seis meses - escrever, revisar e tudo - porque conhecia o assunto. Tínhamos estudado intensamente o Partenon Literário, continuávamos estudando Mario Quintana. Não precisei fazer pesquisa. Por exemplo,estou reescrevendo um livro com a Marisa Lajolo sobre história da literatura infantil. Bom, quero rever todo o século 19, porque da primeira vez o objetivo era outro e o século 19 ficou ausente. Hoje, posso fazer isso e estou revisando todas as fontes, o que leva mais tempo. Em segundo lugar, quis fazer um livro interpretativo. Não quis acumular nomes e datas, e sim dar a conhecer o que os autores dizem. Não podia repetir Guilhermino Cesar, não tinha condições. Como há muita informação, o livro do Guilhermino tem pouca interpretação. Não que não tenha; tem também, mas o século 20 está fora, o livro termina em 1902. Ele nunca escreveu o segundo volume.Então, vamos ver o que aconteceu, vamos em cima dos autores, vamos falar dos livros que as pessoas leem.E assim entram Mario, Erico, Dyonelio, Moacyr. Caio Fernando Abreu ainda não tem, mas tem os contistas dos anos 1970, como Carlos Carvalho. A ideia era ajudar a entender os livros dos quais somos leitores no Rio Grande do Sul. Levei em conta aquele princípio - sem querer fazer paralelos - da Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, de tomar a literatura no Rio Grande do Sul como um sistema. Ela é um sistema independente. Não que ela ignore outras coisas, mas ela é um sistema. Ela dialoga, para o bem e para o mal, com seu público. Fui acompanhando esse diálogo.Valorizar mais o regionalismo, o modernismo, recuperar Raul Bopp, autor dificilmente associado ao Rio Grande do Sul, mas que é daqui, escreveu aqui, tem tudo a ver.Depois,nos anos 1930,Erico,Dyonelio e aí vai indo.
ZH - Seu livro teve um impacto mais extenso do que o público acadêmico de literatura. Me permita um depoimento pessoal: ingressei na universidade em 1984, e seu livro era amplamente lido e estudado em toda a área de humanas.
Tive essa noção ao ver que até questões de vestibular, nos anos 1980, usavam trechos meus. Eu dizia: nossa, isso aí fui eu que escrevi. (Risos.) Isso tem a ver com o fato de que houve, na época, uma volta do Rio Grande sobre si mesmo, um movimento de se repensar o Estado.Nem tudo deu muito certo nisso. Houve também um certo conservadorismo, uma linha mais ligada à cultura regional. Ou seja, houve um avanço intelectual e uma produção independente, de um lado, e algumas coisas meio saudosistas, do tipo "Somos prejudicados", "Temos de nos separar", de outro. O livro fez parte desse contexto. E não havia outro livro sobre a literatura do Rio Grande no século 20. Ele acabou fazendo uma certa dobradinha com o livro da Sandra (Pesavento), e assim chegou a áreas como história, da mesma forma que o pessoal de literatura recorria à Sandra para obter informações.
ZH - A senhora escreveu que o regionalismo literário gaúcho é uma contrapartida do separatismo político.Ainda pensa assim?
Sim. O regionalismo é um problema do Rio Grande do Sul. Sempre foi uma coisa meio mal resolvida. Eu diria que é o retorno do reprimido, aquilo que o Rio Grande não elabora muito bem, mas tem a ver com a memória cultural do Estado. Estamos sempre nessa dubiedade entre a identidade local e a relação com o nacional. Valorizamos nossas diferenças, mas queremos que todos as valorizem também. E há uma peculiaridade conservadora, que faz parte do modo de ser do Rio Grande. É um Estado que às vezes tem grandes avanços políticos e, ao mesmo tempo, valoriza um tipo de tradição que não pode ser mais conservadora, até mesmo anacrônica.
ZH - É notável a sua observação de que o Rio Grande jamais deixou muito espaço para experimentações, vanguardas e inovações formais em seu sistema literário.
Exatamente.Em nenhum momento, o Rio Grande liderou algum movimento literário. São Paulo fez o modernismo, Minas Gerais teve aquela explosão do conto nos anos 1970, o realismo mágico dos anos 1970 foi nordestino. Quando um autor rio-grandense se torna referência nacional, não é muito bem visto por aqui, não é muito rio-grandense, deixa de sê-lo. É como Elis Regina: vai para o Rio, começa a chiar e a gente rejeita. Um pouco dessa dificuldade aparece com Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll. A Fúria do Corpo, romance do Noll que é muito violento no modo como se arrisca e desconjunta a literatura,é impressionante como criação. O livro não foi feito aqui. Imagino que ele teria mais dificuldade de fazer A Fúria do Corpo aqui. Isso não é um julgamento nem uma condenação: é o jeito como nós fazemos. Tem a vantagem de ser uma literatura que se comunica bem com seu público. Os autores daqui, às vezes, só existem aqui, acabam perdendo um público nacional.
ZH - Que conselhos a senhora daria para um jovem pesquisador da literatura gaúcha?
A primeira coisa fundamental é ler o livro do Guilhermino Cesar, para pegar o pulso. Depois, deve- se rever os nomes canônicos que são formadores da literatura.
ZH - Quais são?
Diria que são...(Pausa rápida.) Não posso fazer injustiça, mas são... (Cita pausadamente, refletindo.) ...Simões Lopes Neto,Erico Verissimo, Moacyr Scliar e Mario Quintana. Esses quatro. Esses são a coluna mestra, digamos assim. Devo estar fazendo... (Outra pausa.) Tem muita gente que vai odiar se eu publicar isso, mas (os quatro) estão todos mortos! Eles não vão me odiar. Acho que são assim, vamos dizer, os criadores de uma tradição, cada um deles. É nesse sentido (que são colunas mestras). Há uma tradição do Erico: é muito difícil um escritor,até os anos 1980 do século 20, fazer literatura no Rio Grande do Sul sem se sentir um pouco sucessor do Erico Verissimo. Todos foram chamados assim: Josué Guimarães, Luiz Antonio de Assis Brasil etc.Moacyr não é uma ruptura em relação ao Erico,mas abre um caminho novo. E Mario na poesia. Teatro nem vale a pena citar. Ivo Bender é um grande dramaturgo, mas não há tradição de drama. Para entender como a literatura rio-grandense funciona em termos de criação, esses quatro são imprescindíveis. Não que os outros não sejam importantes. Fico pensando se esqueci alguém. Eu diria: o Guilhermino para se ter uma ideia do panorama,principalmente do século 19, e no século 20 esses quatro grandes escritores que são criadores de uma tradição.