Zero Hora conversou com os dois protagonistas de O Pagador de Promessas. Leonardo Villar, 87 anos, falou por telefone, do Rio, onde mora. Glória Menezes, 77, encontrou a reportagem em sua passagem por Gramado, no fim de semana. Ambos eram estreantes em cinema quando estrelaram o filme que ostenta o mais importe prêmio já conquistado por uma produção brasileira, a Palma de Ouro do Festival de Cannes.
"O PAGADOR" EM CANNES
Leonardo Villar - Foi memorável. Eu havia feito o papel do Zé do Burro no teatro. Estrear no cinema com um prêmio desta importância é inesquecível. Foi um grande empurrão na minha carreira. O que me marcou muito também foi a convivência com atores e diretores que eram ídolos do cinema, como Marcello Mastroianni e François Truffaut. Estávamos todos no mesmo hotel, e era comum nos encontrarmos no restaurante. Posso dizer que fiquei deslumbrado.
Glória Menezes - Foi meu começo, não sabia nem como fazer cinema. Depois de receber um prêmio de atriz revelação no teatro, em 1960, o Anselmo (Duarte) me convidou para o filme. Fui para fazer o papel da prostituta, e Maria Helena Dias faria o papel da Rosa. Mas ela pegou uma pneumonia. E as primeiras filmagens eram feitas à noite, o equipamento era todo alugado e tinha tempo para devolver, não dava para esperar ela melhorar. Então, eles pintaram meu cabelo, que eu estava loira, e, do dia para a noite, eu estava filmando.
Fico pensando, hoje, na responsabilidade que me deram. Eu tão crua, começando mesmo. Fui pela minha intuição e pelo que o Anselmo me dirigiu, e aprendi muito com ele. Ele entendia de cinema como ninguém. Então, fui para a Bahia assim e, quando me dei por conta, estava em Cannes.
A PALMA DE OURO
Villar - Quando nos preparávamos para a sessão de gala, à noite, já tinha o burburinho de que o filme tinha agradado e entrado na lista de favoritos. Lembro que estávamos reunidos no quarto do Anselmo, bebendo, e ouvimos gritos no corredor. Era alguém que vinha avisar que tínhamos ganhado a Palma de Ouro. Logo depois, na cerimônia de premiação, foi uma consagração. Todos aplaudiam de pé, inclusive o François Truffaut, membro do júri. Falavam que eu e Mastroainni, que estava em Divórcio à Italiana, podíamos ganhar como melhor ator, mas o júri optou por uma premiação coletiva. Sinceramente, um prêmio individual não me deixaria tão feliz como a conquista da Palma de Ouro. Minha vaidade, alimentei com críticas boas como a que o Truffaut escreveu nos Cahiers do Cinéma (o diretor francês colocou o brasileiro entre os grandes atores do mundo).
Glória - Houve uma apresentação à tarde. À noite, era a de gala. Na apresentação da tarde, fiquei surpresa que o público aplaudiu as cenas. Quando terminou, aplaudiram de pé. À noite, quando nós saímos da exibição, era um monte de gente pedindo autógrafos. No Brasil, eu tinha recém feito alguns trabalhos, não tinha esse reconhecimento. De repente, estava num festival importantíssimo, dando autógrafo. Foi uma emoção incrível.
IMPACTO NA CARREIRA
Villar - Recebi sondagens para trabalhos fora do Brasil, mas nada mais que isso. Eu tinha uma carreira muito sólida aqui. Trabalhar no Exterior era uma aventura, e é ainda hoje. Tem de ter um bom agente, tem o problema da língua. Gosto de fazer cinema. E por muito tempo tentei conciliar com o teatro e a televisão. Mas, no Brasil, cinema e teatro são luta, e televisão é sobrevivência. Meu último trabalho no cinema foi Chega de Saudade. Na televisão, foi a novela Passione. Recebo convites para atuar, mas não tenho muita disposição. Tenho alguns incômodos e limitações. Para atuar, preciso sentir prazer. Se eu receber um convite irresistível, vou até de muletas (risos).
Glória - Na volta ao Brasil, fomos recebidos com bandeirinha na rua, em cima de um caminhão de bombeiros. O público reconheceu, aplaudiu tanto, foi muito bonito. Foi um estímulo muito grande nesse meu início de carreira. Dificilmente, um ator ou uma atriz têm um começo assim. Recebi convites para trabalhar no Exterior. Mas não tinha a menor possibilidade porque eu já tinha dois filhos, estava me separando do meu primeiro marido, tinha muitas responsabilidades aqui no Brasil. Não deu nem para pensar em ficar por lá. E acho que fiz bem, porque meu sucesso foi aqui.
O LEGADO
Villar - Acho que houve preconceito de algumas pessoas no Brasil pelo fato de Anselmo ser um grande galã do cinema popular e só ter feito um filme antes, a chanchada Absolutamente Certo. Muita gente não entendeu como ele foi lá e fez O Pagador de Promessas, filme tecnicamente muito bem realizado, com bom ritmo de interpretações, e que ainda ganha a Palma de Ouro. Se o filme fosse feito com os recursos de hoje, poderia ser melhor na questão do som, já que teve de ser dublado. É um filme que permanece vivo e atual. Quanto à questão da rejeição pelo pessoal do cinema novo, para mim não existe cinema novo nem cinema velho, existe cinema. Os grandes filmes da história são os que sobrevivem a modismos e cultos. São os filmes normais, bem feitos.
Glória - Acho que o filme fez muito sucesso porque é épico. Não tem moda de roupa, de cabelo, ele não ficou datado. É um cinema moderno, ágil. Tinha uma câmera sempre em movimento. E fico imaginando como eu iria reagir se fosse convidada para fazer com a minha experiência de hoje. Quando vejo O Pagador de Promessas, e aparece todo o povo na escadaria, custo a me encontrar. Não estava preparada para fingir que eu era a Rosa. Fui de corpo e alma com a Rosa, sem pensar se iria fotografar bem ou não.
Première com pompa na Capital
Gaúcha de Pelotas, Glória Menezes esteve em Porto Alegre, em agosto de 1962, para participar da première de O Pagador de Promessas no antigo cinema Cacique, na Rua da Praia. A sessão especial lotou a sala e contou com a presença de autoridades como o então governador do Estado, Leonel Brizola. Ao se dirigir à plateia, Glória disse:
- Quando a bandeira do Brasil se inclinou, significando que tínhamos ganhado a Palma de Ouro, nos recordamos de todos vocês, povo de nosso país.
Principais prêmios do Brasil no Exterior
1953 | O Cangaceiro, de Lima Barreto. Melhor filme de aventura em Cannes
1962 | O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte. Palma de Ouro em Cannes.
1962 | Os Fuzis, de Ruy Guerra. Urso de Prata de Berlim
1967 | Terra em Transe, de Glauber Rocha. Prêmio da Crítica em Cannes
1969 | O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha. Melhor direção em Cannes
1973 | Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor. Urso de Prata em Berlim
1978 | A Queda, de Ruy Guerra e Nelson Xavier. Urso de Prata em Berlim
1978 | Di Cavalcanti, curta de Glauber Rocha. Prêmio Especial do Júri em Cannes
1981 | Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman - Prêmio Especial do Júri e Prêmio da Crítica em Veneza
1986 | Fernanda Torres, melhor atriz em Cannes por Eu Sei Que Vou Te Amar, de Arnaldo Jabor
1986 | Marcélia Cartaxo, Urso de Prata (melhor atriz) em Berlim por A Hora da Estrela, de Suzana Amaral
1987 | Ana Beatriz Nogueira, Urso de Prata (melhor atriz) em Berlim, por Vera, de Sergio Toledo
1990 | Ilha das Flores, curta de Jorge Furtado. Urso de Prata em Berlim
1998 | Central do Brasil, de Walter Salles. Urso de Ouro em Berlim e Urso de Prata (melhor atriz) para Fernanda Montenegro
2008 | Tropa de Elite, de José Padilha. Urso de Ouro em Berlim
2008 | Sandra Corveloni, melhor atriz em Cannes por Linha de Passe, de Walter Salles