Quando entra em sua oficina no bairro Jardim Algarve, em Alvorada, Paulo Tiago Lopes, 42 anos, sente o tempo parar. Os sambas tocados em uma pequena caixa de som misturam-se ao barulho de serras e lixas, e os dias se iniciam e chegam ao fim em ritmo compassado. A correria fica do lado de fora, pois o que ocorre ali não combina em nada com a pressa: são cerca de 30 dias de trabalho cadenciado para que, findados todos os processos, o que antes era um pedaço de madeira vire instrumento musical.
Representante de um ofício cada vez mais rarefeito, Lopes é luthier, nome dado a quem domina a arte de confeccionar instrumentos artesanalmente — algo que envolve conhecimentos de música, marcenaria, design e acústica. O alvoradense é especializado na fabricação de cavaquinhos, mas no catálogo de sua luthieria ainda encontram-se banjos e bandolins. São todos instrumentos caros ao gênero musical pelo qual ele se diz apaixonado: o samba.
— Não é algo que se possa fazer só pelo dinheiro, sabe? Quem trabalha com isso só pelo dinheiro, dificilmente vai fazer um instrumento realmente bom — afirma o luthier. — Eu bato no peito para dizer que amo o que faço, que sou apaixonado pelo cavaquinho e pelo samba, e acho que isso transparece no meu trabalho. Há instrumentos que, depois de prontos, eu tenho vontade de devolver o dinheiro para quem encomendou e ficar com eles para mim (risos).
O apego é explicado pelo início da relação do luthier com a música. Antes de ingressar no universo da fabricação de instrumentos, Lopes foi cavaquinista em uma banda da Capital. Entre um acorde e outro, intrigava-se com o som que saía do instrumento. Queria entender o que determinava as características sonoras de cada cavaco — um sempre diferente do outro.
Até que, quando ficou desempregado do trabalho como segurança, ele decidiu que iria transformar o amor pelo instrumento em profissão. Buscou mestres da luthieria que pudessem ensiná-lo o beabá do ofício e passou a investir pesado na nova carreira. Foi um "tiro no escuro" que acabou dando certo: hoje, o luthier é destacado na cena musical do samba, mas lamenta que o reconhecimento seja mais efetivo fora do Rio Grande do Sul.
— Por incrível que pareça, o meu trabalho é muito mais conhecido em Estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. E não é por não ter sambista no Rio Grande do Sul, porque tem muito. Os músicos lá de cima, onde tem uma oferta enorme de luthiers, encomendam dos gaúchos; enquanto isso, os músicos gaúchos preferem encomendar lá de cima. Vai entender (risos) — reflete.
Lopes orgulha-se de já ter fabricado instrumentos para cavaquinistas renomados do cenário nacional. Entre os clientes está o sambista Jhonatan Alexandre, vocalista do grupo Revelação, para quem ele já confeccionou dois cavaquinhos (um deles usado na gravação do DVD do grupo) e trabalha no projeto do terceiro.
— Sempre que alguém toca um instrumento meu, seja famoso ou anônimo, é uma satisfação. Mudei a minha vida para viver desse sonho, e muita gente não acreditou que daria certo. Então, quando vejo que meus instrumentos estão ganhando o mundo, que as pessoas gostam e recomendam, dá uma felicidade imensa — afirma o luthier, que celebra o recente envio de um bandolim para Londres, na Inglaterra.
Luthiers pelo Estado
Para o futuro, Lopes planeja expandir o catálogo, passando a fazer também instrumentos de percussão. É um movimento inverso ao que foi feito por Airon Marques, 36 anos, e Paulo Cassariego, 59, enteado e padrasto que são fundadores da Tambores do Sul, luthieria sediada em Venâncio Aires, na região central do Estado.
Há uma década, os dois iniciaram a confeccção de atabaques, congas, djembês e outros tipos de tambor. Alguns anos depois, abriram uma nova luthieria, a Cassariego, com foco em cavaquinhos, banjos e, mais recentemente, violões. As duas empresas funcionam na mesma fábrica, mas Airon segue dedicado à percussão, enquanto Paulo migrou para a harmonia.
O trabalho da dupla, que começou pelos tambores, foi motivado pelo amor pela umbanda. Paulo, que é tamboreiro na religião, sentia dificuldade de encontrar determinados instrumentos no mercado interno do Estado, ao passo que havia uma procura grande. Hoje, as maiores demandas da luthieria vêm de percussionistas ligados à religiões de matriz africana e ao universo do samba. Aliás, o contato com o gênero musical foi o que motivou a abertura para o ramo dos instrumentos de corda.
Entre tambores e cavacos, a dupla perde as contas de quantos instrumentos já colocou no mundo. Para confeccionar um atabaque, o tempo médio é de três semanas, conforme Airon. Já um cavaquinho demora cerca de um mês para ficar pronto, segundo Paulo. O trabalho requer dedicação, mas é compensador.
— Para mim, a principal virtude do luthier é a persistência. O processo de cada instrumento é único, por mais que você trabalhe com ele há anos, ainda pode surgir um problema diferente para solucionar. Isso é o mais desafiador, mas também a melhor parte do trabalho: estamos sempre descobrindo coisas novas — afirma Airon.
— Vejo como um ofício que requer muita calma e comprometimento. Eu até posso fazer um cavaquinho em duas semanas, mas prefiro demorar quatro, tendo a certeza de que ele está perfeito. Acho que essa preocupação é o grande diferencial dos instrumentos feitos por luthiers. A gente se preocupa com cada detalhe, com os milímetros, para entregar um instrumento que realmente vai durar a vida toda — completa Paulo.
Para José Batista, 65 anos, de Pelotas, a arte da luthieria também invoca a ancestralidade. O luthier é especializado na confecção do tambor sopapo, instrumento de origem afro-gaúcha que se popularizou nas charqueadas pelotenses ainda à épóca da escravidão e, em 2021, foi reconhecido como patrimônio imaterial do município.
Trata-se de um tambor de grandes proporções, com em média 1m20cm de altura, tido como símbolo da africanidade do Rio Grande do Sul. Batista é referência na confecção do sopapo e um dos poucos que ainda mantêm viva a produção do instrumento ancestral. Parte das técnicas estão dispostas no livro O Sopapo Contemporâneo — Um Elo com a Ancestralidade, no qual o luthier busca registrar os caminhos para a confecção do instrumento, além de narrar sua história pessoal com o "tambor-rei".
— O sopapo mudou a minha vida e a minha visão de mundo. É muito mais que um instrumento, é uma filosofia e uma conexão com a espiritualidade do negro — afirma o luthier.
Para confeccionar o instrumento, o luthier diz que é "guiado pelos ancestrais". Por mais que domine a técnica, o processo não tem nada de mecânico: é sempre carregado de mística, energia e respeito à história do tambor.
Batista explica que o sopapo fabricado hoje tem diferenças em relação ao tambor que era tocado pelos negros escravizados nas charqueadas pelotenses, feitos de troncos de árvores. Houve evolução e adaptação dos materiais, mas os aspectos que caracterizam o instrumento permanecem mantidos.
— Mudanças são naturais, afinal, hoje o sopapo está nos palcos do Brasil e do mundo, cada vez mais difundido. O que a gente precisa é fazer com que ele seja mais abraçado e reconhecido dentro do Rio Grande do Sul. Quanto mais pessoas conhecerem e se interessarem pelo sopapo, maiores são as chances de que essa cultura não acabe esquecida — reflete Batista.
O luthier afirma já ter produzido centenas de exemplares do instrumento, muitos deles para clientes de fora do país. A procura no Estado, entretanto, não é tão imponente. Para ele, a explicação mora na histórica resistência que o Rio Grande do Sul tem em relação à cultura negra, que não perdoa nem mesmo os instrumentos musicais.