— Toda mulher sambista deve ser exaltada como uma rainha. Para conseguir chegar a uma roda e sentar para tocar, a gente mata, no mínimo, uns 50 dragões pelo caminho — diz Shay Rodrigues, 37 anos, idealizadora da roda de samba As Rainhas, exclusiva para mulheres.
O projeto estreou em dezembro de 2021, quando a primeira edição lotou o Boteco do Caninha, reduto do samba em Porto Alegre localizado, à época, na Rua Barão do Gravataí, no bairro Menino Deus. Naquele período, até se cogitou batizar a roda com a alcunha de "guerreiras", mas a verdade é que as mulheres estão cansadas de desempenhar tal função.
— A gente não aguenta mais guerrear (risos). Somos guerreiras nas nossas vidas, 24 horas por dia. No samba, a gente quer ser rainha — justifica Shay.
Desde então, a roda feminina vem reinando na cena musical porto-alegrense com edições mensais. A primeira de 2024 ocorre neste domingo (17), a partir das 17h, no Pátio Vegas (Rua Roque Calage, 100), na zona norte de Porto Alegre. Os ingressos antecipados custam R$ 15 e podem ser adquiridos via WhatsApp (51) 99681-0921. Na hora, o valor fica R$ 25.
Quem comparecer ao evento vai encontrar samba da melhor qualidade cantado e tocado somente por mulheres, do cavaco ao tantan. O repertório será decidido na hora, como costuma ocorrer em todas as edições do projeto. Não há ensaio e qualquer um pode sugerir canções. Entra clássico, lado B, o que for pedido, sem preconceitos.
— Eu sou mais da choradeira, não gosto da loucurada do partido-alto, mas não é toda roda de samba que acolhe esse estilo. N'As Rainhas, fico tranquila para cantar os meus sambas "para trás" (risos) — celebra a sambista Beth Fraga, 58 anos, integrante do projeto.
Há somente uma ressalva no que diz respeito ao repertório: música machista não entra. Já os homens são bem-vindos como público, não como músicos. E é preciso dizer que nem fazem falta: a roda já conta com um grupo fixo de seis musicistas e o espaço fica aberto para qualquer mulher que queira se juntar à mesa para tocar ou cantar, independentemente da experiência.
— Recebemos desde quem já tem não sei quantos anos de carreira até quem está aprendendo, de adolescentes de 14 anos a senhoras de 80. As tímidas, as não incentivadas, as que só tocam nos aniversários da família ou só cantam no chuveiro, todas podem sentar na roda e ocupar esse lugar com a certeza de que não serão julgadas — explica a idealizadora.
Preconceito
A intenção é proporcionar um ambiente acolhedor para mulheres que fazem ou querem começar a fazer samba. Na roda das rainhas, é imprescindível que todas sejam tratadas e respeitadas como sambistas — o que, infelizmente, ainda não é uma prática tão comum de se ver por aí.
Integrantes d'As Rainhas destacam que a maior parte das rodas de samba da cidade são formadas por músicos homens e pouco receptivas à presença feminina. Quando uma mulher pede licença para se sentar à mesa, o retorno pode não ser dos melhores.
— Eu já toco há anos, os caras sabem que tenho a minha carreira, mas sempre rola cara feia, olhar torto, piadinha — diz Shay.
— Isso quando não te boicotam. É comum pedir um tom e darem outro, mexerem no volume — acrescenta Lou Nunes, 30 anos, sambista reconhecida na cena musical do Rio Grande do Sul e uma das integrantes da banda fixa d'As Rainhas. — Quando isso acontece, geralmente, tu é a única mulher da roda, aquela figura solitária no meio dos homens, o que também já te coloca em posição de desconforto. E tem uns (homens) que fazem de tudo para que tu fique ainda mais desconfortável.
Apesar dos percalços, as integrantes percebem que o cenário caminha para uma mudança positiva. Hoje, o samba das rainhas é reconhecido na cena de Porto Alegre e conseguiu ajudar sambistas mulheres a saírem do anonimato, criarem coragem para mostrar seus trabalhos e optarem por seguir uma carreira no meio.
O resultado é visível a olhos nus, conforme elas, mas ainda precisa chegar ao mercado.
— Quem faz a noite de Porto Alegre, os contratantes, são, no geral, homens. Muitos deles não gostam de colocar grupos de mulheres nos eventos porque acham que não vai dar público, mas a nossa roda de samba está sempre lotada (risos). Aos poucos, a gente vai quebrando esses preconceitos — afirma a idealizadora do projeto, Shay Rodrigues.
Enquanto o cenário ideal não chega, as rainhas seguem batalhando por mais espaço para as mulheres no gênero musical. E batalham fazendo samba, porque, como diz a música, "o show tem que continuar".