Na localidade de Três Barras, a 25 quilômetros do centro de Santa Maria, em um sítio contornado por morros, um festival oferece uma pausa na rotina dominada por carros, computadores e celulares. Artistas independentes de diferentes lugares do Brasil e até do mundo se revezam em três palcos durante três dias, tocando do início da tarde até o avançar da noite, enquanto o público ouve a música sentado na grama, deitado em barracas e redes presas às árvores ou refrescando-se na água gelada de um riacho. Crianças e cachorros correm livremente. Não há sinal de internet.
Criado em 2007, em Sapiranga, o Morrostock surgiu para reeditar o lema paz, amor e rock'n roll do mais lendário festival da história da música, o Woodstock, realizado em 1969, nos Estados Unidos, marcando uma geração. Natural de Porto Alegre, o fundador Paulo Zé Barcellos era guitarrista de uma banda de punk que fazia turnês pela Europa. Em uma dessas viagens, participou de festivais anarquistas que lhe deram ainda mais motivação para criar um evento similar no Rio Grande do Sul, dando espaço a bandas gaúchas fora do mainstream.
Houve tanta adesão que o line-up passou a contar com artistas nacionais e internacionais, a maioria sem contrato com grandes gravadoras e fazendo turnês por conta própria. Mesmo com a mudança de Sapiranga para Santa Maria, em 2016, o Morrostock seguiu crescendo até 2019, quando realizou a última edição antes da pandemia. A retomada só aconteceu três anos depois, neste final de semana de dezembro, com um público muito menor do que as 1,5 mil pessoas presentes naquele ano: eram apenas 600 pessoas espalhadas pelo Balneário Ouro Verde, sítio de três hectares alugado pelo festival.
Ao reencontrar-se com o público na sexta-feira à noite, Zé subiu ao palco principal, erguido no gramado do balneário, para comandar a abertura oficial do evento, que contou com uma singela apresentação da tribo indígena Guarani Mbya de Santa Maria, munidos somente de vozes e chocalhos. De cabelo desgrenhado e barba acinzentada, ele foi firme ao pedir que as pessoas tivessem responsabilidade ao descartar o lixo durante os dias de acampamento.
— Vai alterar o estado de consciência? Não altera o estado de respeito — bradou ao microfone.
Além das mais de 30 atrações musicais e contato amplo com a natureza, o cuidado com o meio ambiente é uma pauta da qual o festival se orgulha. Zé assumiu isso como uma bandeira. Acredita que o festival é um momento para apresentar às pessoas a um estilo de vida diferente do que levam fora dali:
— As pessoas são acostumadas a deixar o lixo na rua para o DMLU passar, e acham que, assim, o lixo some magicamente. Então, percebi que a gente precisava educar as pessoas até o momento em que a gente tenha um festival em que todos realmente entendam o que é sustentabilidade. Aqui no festival, tem que ter o mínimo de respeito e empatia. Não é só porque as pessoas estão pagando que elas podem fazer o que quiserem. Tem que cuidar do colega, do vizinho, reciclar o lixo, montar a barraca de um jeito certo, ter um mínimo de responsabilidade e colaborar para que fique tudo legal.
Desde a edição de 2011 o Morrostock conta com banheiros e mictórios ecológicos onde o público pode usar sem gerar grandes impactos ambientais. Enquanto as fezes são armazenadas ao longo de um ano em tonéis com casca de arroz para que seu potencial patógeno seja neutralizado, a urina é misturada à serragem de madeira para anular o nitrogênio. As estruturas foram idealizadas por Diego França, biólogo especializado em sustentabilidade na Índia e há 13 anos na organização do evento.
— Estamos em uma situação crítica em relação ao meio ambiente, é uma situação que ameaça a humanidade — diz.
Alimentação e artesanato
Outra característica do festival é permitir que as pessoas levem comida e bebida de casa, o que garante economia durante o acampamento. Às vezes, Zé vai ao microfone pedir que o público considere fazer algum consumo no bar, o que gera lucro para o caixa do evento. Os preços são justos. Um combo de pão com salsicha, maionese e ketchup, água mineral, latão de cerveja e uma rapadura de doce de leite custou R$ 35. Para economizar dinheiro, Nadine Goulart e o namorado, Rafael Feldens, de 28 e 24 anos, saíram de Porto Alegre na carona do ônibus do bloco de folia No Caminho Eu te Explico. Ela geóloga e ele estudante de história, estão acostumados a participar de festivais de música na Capital, eventos que geralmente ocorrem em estacionamentos ou galpões, mas preferem festivais no meio do mato pela simplicidade da proposta.
— Nos festivais em Porto Alegre, o valor da água mineral é bizarro. Aqui no Morrostock, tem torneiras de água potável e até de água quente, tudo de graça — diz Nadine.
Em turnê pelo Brasil com a dupla eletrônica Hate Moss, a italiana Tina Galassi, 28 anos, desfrutava da tranquilidade à beira do riacho para fazer tricô. Ao lado do namorado e parceiro artístico, o ítalo-brasileiro Ian Carvalho, já passaram por Goiás, Distrito Federal e São Paulo. Conseguiram incluir o Morrostock na agenda e vieram por conta própria, de São Paulo até o Rio Grande do Sul, viajando de ônibus. Seriam os últimos a se apresentar na noite de sábado para domingo.
— Esse tipo de festival dá possibilidade de curtir o dia inteiro, de relaxar. É um lugar seguro para quem toca e para quem quer curtir — diz Tina.
Logo adiante, também na beira do riacho, uma turma de amigos tocava violão e carron, dando um show acústico à parte para quem se banhava ou deixava o corpo secar ao sol. No palco secundário, próximo ao bar com o único ponto de wi-fi em todo o festival para que as pessoas pudessem pagar pastéis, bebidas e sanduíches no Pix, a banda 43 Duo cantava músicas exaltando "a natureza mística" e dizendo que a "revolução vem da cabeça".
A descompressão da vida urbana caiu como uma luva para Leonardo P., 25 anos, prestes a tirar o diploma em Artes Visuais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM):
— É o momento para desopilar a cabeça. Passei a semana inteira fazendo o TCC. Agora, preciso esvaziar.
Acomodados entre o gramado e a área do bar, os Guarani Mbya vendiam colares, brincos, anéis e miniaturas de animais talhadas em madeira. De longos cabelos pretos, batom vermelho e uma caturrita no ombro, Andrieli Timóteo, 18 anos, mirava serenamente o vai e vem do público, que arrastava os chinelos a passos lentos. Pela primeira vez em um festival de música como o Morrostock, gostou de ver pessoas de diferentes culturas. A Jonata Benitez, o Vheraxunu, professor de guarani em escola pública, agradou o fato de não ter lixo espalhado em nenhum lugar, cenário muito diferente do que se vê em outros eventos, principalmente em Porto Alegre.
— Um Porto que já foi alegre... — diz Vheraxunu.
Para a edição de retomada, o palco principal foi construído com bambu e materiais reutilizáveis. Vizinho do Balneário Ouro Verde, Seu Bona, um senhor alto e corpulento de 76 anos com sotaque italiano, doou material para a construção da bilheteria do festival, localizada na entrada do sítio. Segundo França, incluir a comunidade na realização do evento também é uma conduta sustentável. Sentado próximo ao bar, de calça de linho e camisa, Seu Bona destoava do público jovem vestido em sua maioria com roupas coloridas e combinações inusitadas.
— São Pedro deve gostar de música, porque choveu a semana inteira, só parou quando começou o festival — diz.
Uma mistura de gente e de crenças que parece utopia, uma sociedade jamais alcançável, mas acontece de verdade durante três dias ao menos uma vez por ano.