Ela chega com os pés descalços, em gesto de respeito e devoção. O palco é sagrado, é seu altar. Segura o microfone com fio, sempre com fio, pois assim sente um ganho, como se tivesse também um chicote na mão. Quando começa a cantar, sua presença magnética se impõe pelo ambiente. A interpretação serve, precisamente, ao que o personagem sente na canção. É espetáculo com dramaturgia.
Essa performance voltará a ser realizada em Porto Alegre. Com ingressos esgotados, Maria Bethânia subirá ao palco — ou altar — do Auditório Araújo Vianna, nesta quinta (3) e sexta-feira (4), sempre a partir das 21h. Assinando a direção artística e o roteiro musical, a cantora apresenta sucessos de sua trajetória de quase seis décadas.
O repertório da atual turnê de Bethânia começou a ser construído em uma live que ela realizou em fevereiro de 2021 para o Globoplay. Pelo que se viu em suas apresentações recentes, a cantora costuma trazer Um Índio, de Caetano Veloso, e Sangrando, de Gonzaguinha, no começo do show. É no primeiro terço que ela tem interpretado Fera Ferida, assinada pela dupla Roberto Carlos/Erasmo Carlos. Tema da novela com o mesmo nome, a faixa integra o disco As Canções que Você Fez pra Mim (1993), em que a artista presta tributo aos dois compositores.
A partir do segundo terço do show, Bethânia tem cantado Negue, de Adelino Moreira; Yáyá Massemba, de Roberto Mendes e Capinam; e a atemporal Cálice, de Milton Nascimento e Chico Buarque. Ainda entra Volta por Cima, de Paulo Vanzolini, que coloca o público para fazer coro aos versos redentores de "Reconhece a queda/ e não desanima/ Levanta, sacode a poeira/ e dá a volta por cima". Ela também inclui sua versão do pagode romântico Tá Escrito, sucesso do grupo Revelação composto por Xande de Pilares, Carlinhos Madureira e Gilson Bernini.
Bethânia tem encerrado os espetáculos com mais uma canção de Gonzaguinha, a esperançosa e festeira O Que É, O Que É ("Viver/ E não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de ser um eterno aprendiz"). Trata-se de um convite à última catarse. E um lembrete de que a vida, às vezes, pode ser bonita.
Viva e imortal
Bethânia completou 77 anos em 18 de junho. Atuante e celebrada, ela tem tido o tempo como aliado. Aliás, em entrevista que viralizou na web, atestou:
— Gosto dos meus cabelos brancos, das minhas rugas. Gosto. São minhas. O tempo me deu.
No mês passado, a cantora recebeu do governo português a Medalha de Mérito Cultural. Segundo a nota da Presidência da República, a homenagem foi realizada como "forma de gratidão pelo inestimável trabalho que tem feito na divulgação dos poetas portugueses, declamando-os, cantando-os e contribuindo de forma ímpar para a sua popularização não só no Brasil como em diversas partes do mundo". Antes, em maio, a artista tomou posse como imortal da Academia de Letras da Bahia (ALB), em Salvador.
O último disco de estúdio de Bethânia foi lançado em 2021, intitulado Noturno. É um trabalho intimista e, em alguns momentos, minimalista — ora voz e piano, ora voz e violão. Há composições de sua velha parceira Adriana Calcanhotto e de nomes como Tim Bernardes, Xande de Pilares e Zeca Veloso.
Em 2022, ela lançou Pantanal, com participação de Almir Sater, que serviu como trilha de abertura da novela com o mesmo nome. Já em maio deste ano a cantora divulgou o single Em Nome de Deus, gravado em parceria com Chico Chico (filho de Cássia Eller) e com Maíra Freitas (filha de Martinho da Vila) ao piano. A composição é de Sérgio Sampaio.
Mas foi em setembro do ano passado que se pôde aprofundar mais na personalidade da artista com o documentário Maria — Ninguém Sabe Quem Sou Eu, disponível agora na Claro TV+. Com direção e roteiro de Carlos Jardim, o filme traz Bethânia falando sobre si e assuntos importantes em sua trajetória, intercalada com registros de shows, entrevistas e imagens de arquivo.
No documentário, a cantora também comenta sobre sua paixão pelo palco, algo que estará evidenciado para o público que comparecer ao Araújo na quinta ou sexta.
— É onde gosto de estar e me expressar — diz Bethânia no filme. — De demonstrar e registrar tudo o que sinto, penso, idealizo e acho que devo dizer. Que me traduz e traduz o outro que me ouve.