Enquanto compositor e cantor, Bebeto Alves era inquieto. Rompia fronteiras. Era uma voz que unia o Pampa com o universal. É um legado que se perpetuará. O músico partiu na madrugada desta segunda-feira (7), aos 68 anos, completados no último dia 4, após enfrentar um câncer de pulmão, agravado por uma embolia, vindo a morrer no hospital Dom Vicente Scherer, em Porto Alegre, onde estava internado.
Sua trajetória foi dedicada à arte — foi poeta, produtor e agitador cultural, fotógrafo, artista plástico etc. Mas tudo começa com a música: natural de Uruguaiana, na Fronteira Oeste, tocava por lá em conjuntos de baile estilo Jovem Guarda. Bebeto se mudou para a Capital em meados dos anos 1970, onde montou o grupo acústico e psicodélico Utopia.
Em 1978, participou da coletânea Paralelo 30, apontada como um marco da Música Popular Gaúcha (MPG). Seu primeiro disco solo, que leva o seu nome, é de 1981. A partir daí, colecionaria canções notáveis em sua carreira, como De um Bando, Notícia Urgente, Pegadas, Depois da Chuva, Mais uma Canção, entre outras.
O que seria constante para Bebeto seria a junção de elementos do regionalismo gaúcho e do Prata — milonga, xote e chacarera — com sonoridades de outros Estados brasileiros e do redor do globo, como rock, pop, funk, reggae, tango, bolero, entre outros.
— Bebeto promovia uma síntese sempre moderna, instigante e cosmopolita entre a cultura gaúcha e a dita cultura universal — aponta o cantor e escritor Rogério Ratner, autor dos livros Woodstock em Porto Alegre e Música do RS: Ontem e Hoje.
Ratner frisa que Bebeto trazia um discurso engajado e poeticamente afiado. Para o autor, o músico estava ininterruptamente pensando, repensando, pesquisando e discutindo os elementos e fatores envolvidos na forja da cultura gaúcha.
— Era permanentemente comprometido com uma postura aberta, generosa, agregadora e não excludente. Sem quaisquer ranços ou nostalgias pelo passado, ou mesmo preconceitos quanto ao que já se manifestou em nossa cultura regional e ao que viesse a surgir nesse horizonte.
Amigo há mais de 40 anos de Bebeto, o cantor e compositor Nelson Coelho de Castro corrobora. Segundo ele, era alguém que trabalhava com o significado do Pampa, mas, ao mesmo tempo, com “a cabeça em Nova York”.
O músico recorda que a amizade dos dois se solidificou a partir da coletânea Paralelo 30. Os dois, acompanhados de Gelson Oliveira e Antonio Villeroy, realizaram o projeto Juntos, com o qual excursionaram por diversos países. Para Nelson, o amigo foi um artista inteiro. Alguém que sempre devolvia o que via na forma de arte.
— Maturava, fazia uma reflexão e transformava em arte, fosse na fotografia, nas artes visuais ou na composição. Promovia um gesto de afronta ao que estava estabelecido. Colocava algo novo na permanência. Ele não suportava uma paisagem estacionada. Não suportava a inércia, estava em constante vômito de criatividade — relata o músico.
Essa inquietude artística também é observada por Humberto Gessinger, com quem Bebeto chegou a colaborar:
— Para além do talento musical, era um cara que não se acomodava. Muito intuitivo, teve insights interessantíssimos sobre a música gaúcha e sua inserção no liquidificador mundial. Coisa que se aprende mais nas cordas do violão do que nos livros de sociologia.
Conforme Nelson, Bebeto não transfigurou a milonga, mas a colocou em outro patamar:
— Ao contrário daquela solidão e contemplação pampeana da milonga, Bebeto vai ao revés. Ele não apenas a reverencia, mas também a catapulta para algo ensolarado e dançante.
Consequentemente, Bebeto colaborou e influenciou gerações de músicos do Estado, como é o caso de Vitor Ramil. O cantor e compositor lembra que antes de conhecer Bebeto pessoalmente, ele o associava às ideias de utopia, não só por causa do grupo homônimo, mas também pela experimentação. Essa impressão nunca mudou.
— Ele foi dos primeiros, se não o primeiro, a trincar o monólito do tradicionalismo restritivo ao nosso imaginário e à nossa musicalidade. Se ele apostava em alguma tradição, ela seria viva e futura. Para isso compôs um vasto repertório, ainda por ser assimilado em sua torrente palavrosa e complexa, que, a la Dylan, as melodias parecem não comportar. A utopia do Bebeto foi determinante para a utopia de todos nós — reflete Ramil.
O jornalista e músico Jimi Joe ratifica Ramil. Com King Jim e Bebeto, eles formaram o projeto Los 3 Plantados, integrado por três artistas que passaram por transplantes de órgãos — Bebeto havia recebido um transplante de fígado em 2013. Segundo ele, Bebeto se diferenciou dos demais contemporâneos da MPG por “desrespeitar regras e fronteiras entre os mais diversos gêneros musicais”.
— Me parece que o legado de Bebeto para a música regional gaúcha foi fazer dela uma linguagem muito particular que abriu caminho para gerações de compositores que se seguiram, para criarem suas próprias narrativas sem nunca perder de vista as raízes de suas obras.
Já Ratner arremata:
— Em resumo, Bebeto foi um eterno fronteiriço sem fronteiras.